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Tag: Skate

Lá vai o skatista dar utilidade recreativa ao mundo. Coloca o skate no chão. Três remadas. Buuuum! Fica decretado, pela lei da gravidade, que parede é rampa, que escada é gap, que banco é copping, que corrimão é escorregador. PRI (Publique-se, Registre-se, Intime-se).

Não havia internet na época, então, de vez em quando, alguém chegava excitado com uma fita debaixo do braço. Não era pornô, era filme novo de skate. Os astros eram caras como Christian Hosoi, Tony Hawk, Tommy Guerrero, Rodney Mullen, entre outros. Festa estranha com gente esquisita, eu sei, porém, mais aguardada que final de copa do mundo. A molecada se amontoava na sala de televisão, olho duro, assistindo e vibrando com cada manobra na tela. Terminada a primeira sessão, imediatamente começava a segunda, com direito a pause, slow motion e comentários cheios de gírias. Dava para sentir o goforit brotando na molecada. Uma vontade louca de andar de skate que nos empurrava para frente, para cima e para novas manobras.

Tem cara de santo, eu sei! Era mano de Jesus Cristo, tô ligado! Seus seguidores são mais fieis que os seguidores do Felipe Neto, pode crê! Mas adora mijar no rolê dos skatistas. Já faz uma semana que está mijando sem parar. Issae não é normal. É incontinência urinária. É falta de frauda geriátrica. É falta de penico debaixo da cama.

O que sobra para um skatista fazer quando está chovendo? Treinar olie no tapetinho? Treinar manual com shape velho na garrafa pet? Andar de fingerboard? Jogar videogame do Tony Hawk?

Quero denunciar esse santo por mau comportamento. Chega de mijar no rolê! O skatista limpa os rolamentos, troca a lixa e vai dormir com o céu estrelado. Quando acorda a rua está mais alagada que o banheiro do Rock in Rio. Népussiver! Será que o céu fica tão longe do chão que não dá para ver que a rodinha do skate escorrega na pista molhada?

Esse descaso não pode continuar! Se esse senhor insistir em floodar a rua com a água do seu joelho, vamos floodar o perfil dele com tutoriais de kick flip e fotos da Raissa Leal nas olimpíadas. Todos contra as atividades urinárias de São Pedro. Tmj! Bora lá!

As vezes vou até a cozinha, coloco um fio de água na frigideira e acendo o fogo. Faço isso para assistir de camarote o líquido se transformando em vapor. Aguardo com paciência a aparição das microbolhas e recordo as palavras ígneas da professora de ginásio: “Água vira vapor quando chega no ponto de ebulição”. Hoje sei que pessoas também entram em ebulição. Chamo esse momento de Ponto de Ícaro. Escolhi esse nome porque Ícaro teve de criar asas para escapar do labirinto.

O Ponto de Ícaro não tarda e nem falha. Só que marcha com botas de lã. Quando menos percebemos, já é, já Ícaro. Recentemente vi um Ponto de Ícaro no documentário Dogtown and the Z-boys. Vou contar um pouco do que aconteceu antes de chegar no ponto.

Antes dos Z-boys, surfistas que viraram skatistas, a maioria dos skatistas andavam de skate numa mistura de brincadeirinha de circo com saltos de atletismo. Foi quando Jay Adams entrou na cena. O Ícaro do skate foi participar de um campeonato tradicional e fez manobras que deixou o público e os juízes sem entender nada. Jay era mais do que um participante, era uma nova forma de vida sobre rodas, uma nova forma de ser a mesma coisa, um novo skatista. Os juízes, espantados, não sabiam sequer como julgá-lo. Os outros competidores ficaram putos, mas a platéia ficou extasiada.

Naquele verão, Dogtown passou por uma forte estiagem e todos os cidadãos foram obrigados a esvaziarem suas piscinas. A serpente da gênese foi chamada. Sua missão foi convencer os Z-boys a invadirem os quintais e fazê-los enxergar ondas nas superfícies curvas das piscinas. Nasceu assim o skate vertical. E quando todos já estavam deslizando pelas paredes côncavas, Jay Adams recebeu um impulso de Ícaro e começou a subir… subir… subir… Só que a parede da piscina acabou e Jay continuou subindo… subindo… subindo…

Talvez seja por isso que Jay Adams acabou se envolvendo com drogas em vez de se envolver com a mídia. Talvez o que Jay tenha visto naquele vôo vertical seja perturbador demais para fazê-lo voltar a morar numa vida horizontal. Talvez seja esse o êxtase que esteja por trás do visceral mantra “skate or die”. Talvez seja por isso que sentimos dor nas costas e no peito. Asas atrofiadas querem crescer e o coração quer sair do labirinto.

Olie air é a manobra que divide a história do skate. Antes do olie air os skatistas eram cobras deslizando pelo chão, depois do olie air os skatistas se transformaram em cangurus. Tudo que impedia a passagem passou a ser pulado de olie, calçadas, buracos, muretas, hidrantes, bancos.

Quando era moleque, pular um banco de olie era motivo para virar capa de revista. Só que skatista é zica, mal aprende uma manobra, quer complicar. Como se não bastasse pular tudo de olie, começaram a inventar variações da manobra.

A variação mais famosa do olie air se chama kickflip. Outro dia, resolvi treinar. Depois de uma hora, meu pé já havia memorizado o movimento, e pá: acertei meu primeiro kickflip. Fiquei parado e emocionado em cima do skate. Como pode um ser humano ficar tão feliz apenas por acertar uma manobra de skate? Acerte seu primeiro kickflip que irá entender.

Colocou o skate na beira do quarter pipe, pisou no tail com o pé esquerdo, colocou o pé direito no eixo da frente e se jogou no vazio com convicção e estilo. Segundos antes, pensei em censurá-lo, pois nunca havia visto nenhum dos moleques da pista dropando do quarter pipe. Mas seu semblante, enquanto arrumava o skate, era tão calmo, mas tão calmo, que me convenci que ele sabia o que estava fazendo. Dito e feito. Aliás, muito bem feito. E por que não dizer, perfeito. Mas não contente de estar com a manobra no pé, voltou para repetir. Deve estar repetindo até agora, obstinado que é.

Garrei no skate. Já tem uns dois meses que ando na miniramp. Vai e vem, vai e vem, vai e vem. Aliás, vai, faz manobra, vem, faz outra manobra, vai, faz outra manobra, vem… Isso nos dias bons. Nos dias ruins, vai, bate o skate na canela, cai, levanta, vem, bate o skate no maléolo…

Quer aprender os nomes dos ossos dos pés? Vai andar de skate. Maléolo é aquele osso lateral da canela. Depois do chute no saco, skatada no maléolo é a segunda maior dor que um homem pode experimentar. Tá! Exagerei. Mas que dói pra caralho, dói.

Não sei que bicho me mordeu para voltar a andar de skate depois de 30 anos. Acho que foi o vírus do prazer desportivo associado ao prazer de deslizar nas ondas de concreto. Quase desisti no primeiro dia, quando entrei na loja para comprar as peças do skate. Me senti um vovô metido a adolescente. O que dirão? Pensei. Foda-se! Pensei em seguida.

Fico feliz de não ter dado ouvidos aos meus preconceitos. Andar de skate está me fazendo bem para saúde e para cabeça. Acordo, tomo café, coloco o skate nas costas, vou para o clube e ando na miniramp até as pernas ficarem bambas. A cabeça fica zerada de estresse e neuras.

Minha esposa curte, vê os benefícios, vê minha satisfação, mas acha estranho. Acredita que é uma fase. Que estou saudoso da juventude, que vai passar e vou voltar ao normal. O que ela não sabe é que não existe skatista normal.

Pajuaba chegou na pista segurando seu longboard.

— Cadê o outro skate? — perguntei.

— Só trouxe esse hoje. Preciso descansar as pernas e o joelho — ele me disse.

Achei estranhíssima a declaração de abstinência, mas respeitei. Pajuaba sentou-se ao lado da miniramp e ficou assistindo meu rolê. Dava para ver o pé do cara coçando dentro do tênis. Quanto mais animado ficava meu rolê, mais Pajuaba se coçava. Até que ele desistiu de resistir e caiu em tentação. Pegou o longboard e começou a andar na miniramp.

Tem gente que é rica de não ter o que fazer com o dinheiro e não tem 1% da felicidade do Pajuaba acertando uma manobra. Seu amor pelo skate é inspirador. Me faz ouvir Tim Maia: “Quando a gente ama, não pensa em dinheiro, só se quer amar, se quer amar, se quer amar…”

Imagine uma fábrica abandonada do tamanho de um quarteirão, com chão de cimento liso, vários gaps (subidas e decidas), pátios, bancos, etc, que um bando de skatistas invadiu, grafitou, jogou mais concreto e transformou numa pista de skate. Acrescente a isso uma comunidade se encontrando nesse lugar diariamente para cair e levantar juntos. Esse era o galpão. Uma espécie de Shangrilá dos skatistas no meio do triângulo mineiro.

O Galpão não era meu, nem seu, nem nosso. Era terra de ninguém. Bastava ter coragem de atravessar a porta estreita e fazer uso e fruto. Demorei até criar coragem. Temia que fosse barra pesada. Até que fui andar na miniramp e me rendi. Virei frequentador assíduo do turno da manhã. Chegava cedo, quando o Galpão ainda estava vazio e parecia um santuário, dava uma vassourada na miniramp, passava vela no coping e andava até meio dia.

Foi um privilégio social frequentar o galpão. Fiz muitos amigos novos lá, de todas as idades, classes e culturas. Tive muitos alunos e professores lá, tudo gratuito e extra oficial, pois todo skatista é aluno dos que sabem mais e professor dos que sabem menos.

Lembro do começo do fim, quando o funcionário da imobiliária foi lá pela primeira vez falar que iria colocar um portão com cadeado na entrada. Vi o funcionário conversando com um dos skatistas mais velhos, mas não acreditei. Achei que era blefe. Passou um mês e nada aconteceu. Tive certeza que era blefe. Até que começou a guerrilha da ocupação.

Estou velho demais para brincar de Che Guevara. Com a pouca saúde que me resta, subir um caixote de olie air já é um ato revolucionário. Mas acompanhei a guerrilha pela internet. E foi na internet que via a foto do Galpão destruído. Assim que a construtora ganhou a causa de posse, colocou uma máquina para quebrar os obstáculos e transformou o galpão em um ovo mexido.

Descanse em paz, querido Galpão. Até na despedida você foi grandioso. Não quis sair de cena a francesa, escolheu um Grand Finale. Sentiremos saudades de sentar no seu concreto, debaixo da sua sombra, para descansar do rolê. Sentiremos saudades de entrar por aquela porta estreita que se abria para um universo paralelo. Sentiremos saudades de ficar te olhando e sonhando com tudo que poderia ser construído em você. Eh, Galpão, mais essa na sua conta! Além de nos ensinar a andar de skate, você nos ensinou a sonhar.

Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo
O mal que a força sempre faz
Não sou feliz, mas não sou mudo
Hoje eu canto muito mais

Uma miniramp é um violão com dois trastes. Você só tem uma casa para fazer todos os acordes (manobras). Claro! Usando os pés. De resto, é muito parecido. Primeiro você precisa aprender as três manobras básicas: drop, rock and roll, stall. No começo é o caos. Falta equilíbrio. As pernas se recusam a fazer os movimentos. Os pés se enroscam. Você tem convicção que vai cair e morrer, mesmo estando a um metro de altura do chão. Depois de praticar bastante, fica automático. Daí, quando vai executar as manobras difíceis, descobre que não tem nada de difícil, que são apenas variações das manobras básicas. Muda uma posição no truck, acrescenta um movimento a mais, retira outro, escorrega o shape para frente. E assim por diante, igual no violão.

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© 2024 · Marcelo Ferrari