ÍNDICE A-Z

A
C
P
V

Tag: Ser

Vou te contar como aconteceu. Você deixou de ler os quadrinhos e começou a ler os editoriais. Trocou a disputa do cabelo mais comprido pelo cargo mais alto. Fez pano de prato com a camiseta do Led Zeppelin e começou a dormir de pijama. Passou a repetir para seus filhos as mesmas frases feitas que odiava ouvir dos seus pais. Parou de acreditar em visão de raio-x e passou a crer na previsão do tempo. Trocou o improviso pelos fundos de renda fixa. Trocou os óculos escuros pelo colírio. Trocou as gírias pelos jargões de direito penal. Trocou os manos pelo money. Trocou a sinceridade pelo uísque. Passou a cultuar a estrutura do átomo, livros de capas duras e revistas de mulheres peladas. Acertei? Sua penitência é rezar cinco paçoquinhas.

A gente não se lembra que foi até a rodoviária, escolheu o destino, comprou a passagem e entrou no ônibus. A gente não lembra de nada disso. Quando a gente se dá conta da gente, a gente já é gente, mais um na contagem regressiva do tempo. O ônibus balança, nós dá um tapa na bunda e acordamos na poltrona. Quemqueusô? Ondeutô? Dondeuvim? Prondieuvô? Nos perguntamos. O silêncio responde. O silêncio é a resposta constante que está sempre antes e depois da pergunta. Mas silêncio é eterno e não na fala língua da gente, então, vamos de poltrona em poltrona perguntando a tudo que é passageiro: “Porque a gente é assim?”.

Uns dizem que é preciso dividir o ônibus em poltronas impares e pares e guerrear contra o lado oposto. Outros dizem que é preciso jogar fora o serviço de bordo, jejuar e fazer penitencia. Outros dizem que é preciso rezar para o motorista. Outros sequer respondem, estão ocupados demais bebendo pinga, jogando baralho, assistindo seriado na tv a cabo, fazendo leis e jogando banco imobiliário.

E o ônibus continua balançando. Só que agora não é mais tapa na bunda, é soco no estomago, mawashi, jab e martelada na cabeça. A viagem se transforma em um treinamento da tropa de elite. “Pede pra sair! Pede pra sair! Pede pra sair!”. É nesse ponto que a gente se arrepende de ser gente. Porém, estranhamente, a gente não desiste da gente. Mesmo sem saber o que é ser gente, a gente continua sendo. É nesse ponto que a gente finalmente entende que a gente é a resposta.

12
© 2024 · Marcelo Ferrari