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Tag: Pessoa

Olho pela janela do táxi e vejo um ônibus.

Viajo na ideia que a vida é um coletivo de almas. Uns sobem, outros descem, fica cheio, vazio, meio-vazio, meio-cheio. E cada ponto é final e partida.

Raimundos e fundos, Veras e esperas, Ritas e ritos, Dolores e dores, Celestes e Socorros. Todos dividindo o mesmo hálito, espaço e destino.

De repente, um calor clandestino, misto de cumplicidade e ternura, me incendeia o peito.

Olho pela janela do ônibus e vejo um táxi.

Está consumado!

Está em dúvida se encontrou sua alma gêmea? Pergunte ao candidato/a qual é a revista que ele lê. Se Forrest Gump é capaz de conhecer as pessoas pelos sapatos, por que não confiar em quem faz pesquisa de mercado? O cupido agradece. As cartomantes é que não vão gostar. Conheço um rapaz que passou um ano namorando uma loira com cara de Faça Fácil. Só na virada do milênio foi descobrir que era Capricho. Se tivesse perguntado antes, não precisava ter comprado tanta Playboy. Uma amiga, leitora de Contigo, foi para o litoral e pensou ter encontrado sua cara metade rolando na areia. Não perguntou a revista. No domingo seguinte, teve que trocar o programa do Gugu pelo jogo ducuríntia. Seu pretendente era leitor de Placar, quer dizer, não lia, olhava as fotografias. Outro amigo, adepto do tomate e rúcula, se encantou com uma suposta leitora de Boa Forma que se revelou uma Ana Maria fazendo dieta. Vá além da capa. Investigue a preferência editorial do seu pretendente. Melhor passar vergonha do que passar raiva.

Donana vira o balde em posição de tambor e batuca uma folia de reis. As galinhas, hipnotizadas pelo som, vão surgindo das árvores, das cestas, das moitas, e até de outras dimensões. Donana enche o balde com grãos de milho, remexe com a mão e o tambor vira um chocalho. As galinhas giram feito mestre sala ao redor da porta-bandeira. Donana apanha um punhado de milho e arremessa ao ar. O terreiro fica salpicado de confetes amarelos. Frevo intenso. Naipe de cocoricós. Os foliões comem o carnaval. Sobra a quarta-feira de cinzas.

Maria parou em frente a gôndola e encarou o fetiche de páscoa que custava três sacos de feijão. Maria não sabia ser pagã, nem brincar de boneca. Mentiu para si mesma dizendo para moça do caixa que era para o neto. Quando o ovo de páscoa fez “bip”, Maria se sentiu escolhendo Barrabás. Ao fim da via-sacra, vestiu o avental vermelho que veio de brinde dentro do ovo de páscoa e foi lavar a louça. Maria não entendeu o triângulo azul com a letra “s” no meio do avental. Seria “s” de compreenção? O avental da mulher maravilha era a capa do super-homem.

Era uma vez Piá, uma águia cega que não saia do ninho.

Piá sabia voar, mas tinha medo de trombar com as árvores. Certo dia, Piá ouvi uma voz dizendo que o dragão Roger estava a caminho e iria incendiar seu ninho. Piá não sabia o que fazer. Podia ficar ali e morrer queimada ou arriscar um voo e se salvar. Piá pensou que se voasse bem alto e nunca aterrissasse, não correria o risco de trombar com nenhuma árvore. Então, Piá se atirou no ar. Assim que Piá começou a voar, sua visão retornou mais forte do que nunca. É por isto que os descendentes de Piá enxergam longe e nunca colocam os pés no chão.

Era uma vez Roger, um dragão covarde que vivia numa caverna.

Quando Roger ouvia qualquer barulho, disparava um grito. O grito de Roger era tão poderoso que saiam labaredas de fogo de sua boca. Certo dia, Roger ouviu uma voz dizendo que devia sair da caverna, encontrar a montanha mais alta do mundo, subir no pico da montanha, e gritar — com seu grito mais forte — para uma águia que lá morava: “voe!”. Ao ver uma águia cega levantando voo, Roger livrou-se da covardia para sempre. É por isto que os descendentes de Roger sempre usam a força de seus imperativos para criar coragem.

Era uma vez Eguiberto, um lagarto correto e reto.

Eguiberto tinha mais de duzentas vértebras, mas não sabia como usá-las. Eguiberto precisava executar dezenas de manobras para entrar em buracos e fazer curvas. Certo dia, Eguiberto ouviu uma voz dizendo que devia andar pela mata até encontrar um bambuzal. Quando encontrasse, devia ficar observando o movimento dos bambus durante uma tempestade. Eguiberto fez isso e descobriu que se curvar conforme as circunstâncias não era sinal de fraqueza. É por isto que os descendentes de Eguiberto sabem que a reta depende da curva.

Era uma vez Dunga, um macaco sem rabo.

Certo dia, Dunga ouviu uma voz lhe dizendo que devia se inscrever na corrida de pular de galho em galho. “Como se não tenho rabo?”, Dunga se perguntou. A mesma voz lhe disse que deveria se alimentar com uma escama do peixe Sashi e confiar no seu instinto. Dunga fez isso e improvisando a cada pulo, venceu a corrida usando apenas as mãos. É por isto que os descendentes de Dunga sabem que a inteligência não está no que se tem, mas no que se é capaz de fazer com o que se tem.

Era uma vez Charlot, uma papa-léguas com unha encravada.

Charlot vivia sentada. Não consegui colocar os pés no chão de tanta dor que sentia no dedão do pé. Certo dia, Charlot ouviu uma voz lhe dizendo que devia ir até o rio, pegar uma escama do peixe Sashi e levar até o macaco Dunga. Se fosse bem rápida, não sentiria dor. Charlot concluiu a tarefa sem sentir dor. É por isto que os descendentes de Charlot estão sempre correndo para lá e para cá.

Era uma vez Sashi, um peixe de sangue quente.

Certo dia, Sashi ouviu uma voz lhe dizendo que devia subir o rio Vadi seguindo a corrente de água quente e encontraria uma papa-léguas na cabeceira. Sashi devia dar uma de suas escamas a papa-léguas. Sashi subiu o riu e encontrou com a papa-léguas. Arrancou uma de suas escamas e entregou para ela. É por isto que os descendentes de Sashi sabem controlar tão bem o quente e o frio e nadar mesmo contra a correnteza.

Era uma vez Toin, um sapo que só tinha uma moeda e precisava alimentar uma grande família.

Certo dia, Toin ouviu uma voz dizendo que devia gastar sua única moeda indo até a padaria, comprando pão e voltando pelo mesmo caminho. Toin fez isso e encontrou outra moeda no caminho de volta. Por isto que os descendentes de Toin nunca são avarentos, pois sabem que tem uma moeda na ida e outra na volta.

Era uma vez Zoer, um deus que sonhou que era sapo, peixe, papa-léguas, macaco, lagarto, dragão e águia.

Saio para ver a luz da tarde. Ela me oferece coração de boi. Agradeço a gentileza e recuso, não pelo gosto, mas pelos fiapos, que prevejo, ficarão entre os dentes.

Acendo o cedê-player. Ela me chama. Faço leitura labial: “Você está surdo?”.

Peço que desamarre o lenço suado que segura os cabelos cinzas e meto cazuza em seus ouvidos. Ela sorri quase virgem, depois cruza o espaço entre a cozinha e o futuro uma duzia de seis.

Abro uma garrafa de Chico Buarque e fico aguardando o desfecho da cena.

Ela liga a televisão na missa, lê a receita com a ponta dos dedos e joga farinha branca na bacia azul. O cachorro escarlate em volta dela.

O que será que me dá?

Ela arremessa a massa redonda sobre a mesa. Ah, se meu cavalo falasse inglês!

Entro na cozinha para beijar a estrela da cena. Ela está de olhos fechados, com as mãos abertas em oferenda, repetindo as palavras do padre eletrônico. O pão nosso de cada dia cilindrado sobre a mesa.

Preciso não dormir. Amém.

Barba por fazer, cabelo por fazer, bigode por fazer, cigarro por favor. Happy me confessa que o corpo fechado com três blusas é raiva. Humanos uh! As minas pá!

— Alegria é vida, se não faço antídoto, morro de veneno — ele me diz

Colam dois rappers no papelão de geladeira. O estranho no freezer sou eu: hippie e hope. Não é caô, é caos. Happy pisa na ponta do cigarro para economizar divã. Pede para o DJ colocar um MP3 no Macintosh e faz pose de B-boy.

Gargalhada no salão, enquanto meu coração Luiz Gonzaga e Gonzaguinha.

Dizer a verdade é fácil. Todo mundo já nasce falando a verdade. Mentir não, dá trabalho. Por isso leva um tempo até uma criança aprender a mentir. Mentiras não fazem sentido para as crianças assim como as metáforas. Se você disser para uma criança que fulano é cabeça de vento, ela vai querer olhar dentro da cabeça de fulano, se você disser que fulano é pé frio, ela vai querer colocar a mão no pé de fulano para sentir a temperatura.

Metáforas são mentiras. E são também a prova viva de que a mentira tem lugar no mundo. O que seria da poesia sem a mentira? O que seria do humor? O que seria da literatura? O que seria do teatro? O que seria do cinema? Enfim, o que seria da arte?

Onde há arte há mentira e onde há mentira há arte. E se esse enunciado sobre a mentira for verdadeiro, então, o futebol arte deve ser um grande mentiroso. E é! A mentira no futebol se chama drible. O drible do futebol corresponde ao “faz de conta” da literatura. O jogador faz de conta que vai pela direita, mas é mentira, ele passa pela esquerda. O jogador faz de conta que vai chutar a bola, mas é mentira, ele sai correndo. E assim por diante. E quanto mais mentira melhor.

Mas por que estou falando isso? Porque morreu hoje o maior mentiroso do futebol brasileiro e mundial, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Nenhum jogador contou mentiras mais cabeludas do que ele. Pelé enganou zagueiros e goleiros até sem a bola no pé. Suas mentiras encantaram o mundo e, nós, brasileiros, nos orgulhamos de cada uma delas.

Para terminar essa crônica fúnebre, vou contar uma piada. Uma mulher chega no cartório e diz que quer registrar o filho com o nome de Edson. O escriturário pergunta onde está o filho. A mulher diz que o filho ainda não nasceu. O escriturário manda a mulher embora. A mesma situação se repete várias vezes. Até que o filho nasce. A mulher vai ao cartório e diz que quer registrar o filho com o nome de Pelé. O escriturário pergunta: “Não era Edson?”. Ela responde: “Edson era antes do nascimento.”

Quem inventou essa piada não desconfiava da profecia que estava fazendo: Edson era antes do nascimento. Depois do nascimento, virou Pelé, maior mentiroso do mundo, registrado no cartório do futebol, carimbado com mil gols, para todo sempre.

Não se tratava de um evento para medir filhotes de galinhas. Era pinto mesmo. Daqueles que os humanos do sexo masculino possuem e se orgulham tanto de possuí-los. Principalmente depois que Freud fez dele – o pinto – uma espécie de “eu tenho você não tem”. Era a versão Rambo do Concurso de Miss Universo. A disputa se dava através da medição. O candidato colocava o pinto sobre a mesa milimetrada e media o tamanho, depois colocava sobre a balança para medir a massa. O número somado e dividido era a nota.

Durante a medição muitos pintos caíram por terra, sobretudo daqueles que gozavam com o pau dos outros. Políticos, jogadores de futebol, artistas, empresários, fazendeiros, jornalistas, publicitários e toda sorte de supostos pintudos ficaram só na propaganda.

Ganhou um pintudo da alta sociedade. Competidores das classes sociais inferiores reclamaram de propina. O vencedor subiu no pódio e mostrou o pinto para todo mundo. Ele era o cara, o maior pinto do mundo. Claro que na hora do discurso, o Mister Pinto não pediu a paz no mundo. Ele disse… (melhor não dizer o que ele disse)… mas todos aplaudiram e ele ficou de pau duro.

Caminhávamos em prosa e verso por uma longa avenida.

— Para onde estamos indo?
— Para o ponto — respondi.
— Para quê?
— Para pegar o ônibus.
— Para que?
— Para voltarmos para casa.
— Este é o ponto!
— Que ponto?
— Se não houvesse casa para voltar? — ele perguntou.
— Como assim!?
— Nós ficamos na rua durante horas, às vezes dias, quando viajamos, meses, mas sabemos que estamos fora de casa, que estamos caminhando e que podemos parar de caminhar e voltar para casa. E se fosse diferente?
— Diferente como? — perguntei.

Meu amigo nadou até o meio da rua. Seus olhos brilhavam de angústia. Ele respirou fundo para poder parir aquele pensamento insano. Sentei na sarjeta. Eu era apenas parte da circunstância dele. Ele estava conversando com a rua infinita, a rua somatória, a rua atrás da fogueira de platão, a rua na cabeça de deus.

— E se a rua fosse a casa?

Mesmo um paraquedista em queda está voltando para casa. A queda livre é a rua que o leva de volta ao chão. Meu amigo havia acabado de tirar o chão do paraquedista. E se não houvesse lugar para voltar? Se a rua fosse a casa? Se a queda fosse o chão? Se não houvesse lugar para cair senão em si?

How does it fell? Calafrio! Continuei andando. Eu precisava sentir a força da gravidade. Era muita liberdade ser morador de rua.

Você recebe muitos convites, mas não se iluda, você jamais foi, é ou será convidado para um churrasco. Quando lhe dizem gentilmente “Vai ter um churrasco em casa, aparece lá!”, você não está sendo convidado para participar e sim para animar a festa. Você é a banda do Zé Pretinho. “Aparece lá!” não é convite, é jeitinho brasileiro de contratar sem cachê.

Até aí nenhuma novidade. Você sabe disso. Não é um fato que você gosta de admitir, mas você sabe que é assim. O problema é que mesmo sabendo, você vai.

E por que você vai? Simples. Vou te contar. Você vai empurrado pela vista grossa, pelo sentimento gregário, pela esperança, e pela maldição que Milton Nascimento e Fernando Brant lançaram sobre sua profissão: “Todo artista tem que ir aonde o povo está!”.

“Que bom que você veio!”, diz o dono do churrasco quando você chega. E você se sente especial, querido, reconhecido, aplaudido. “Me dá um minutinho que já volto”, diz seu anfitrião entrando para dentro da casa. Você acha que o cara vai pegar uma cadeira, uma cerveja e um prato para você se servir. Nada disso. Seu contratante disfarçado de anfitrião volta com um violão.

Você é músico, não é vidente, mas basta relar no braço do violão que adquire o poder de prever o futuro. Você vê tudo que irá lhe acontecer desde aquele instante até a célebre frase: “Toca Raul!”.

O dono do churrasco empilha alguns engradados de cerveja para você se sentar, pois acabaram as cadeiras. O povo abre um círculo na sua frente. O palco está montado. Casa cheia. A expectativa pela primeira música se mistura com o cheiro de vinagrete.

Alguém pede para você tocar uma música que você não sabe tocar. Você faz um dedilhado, confere a afinação e toca outra do mesmo estilo. Agrada do mesmo jeito. O povo se anima e começa a cantar junto. Você está em plena realização do ofício e da maldição.

“Onde fica o banheiro?”, você pergunta. Você quer mijar. Não porque bebeu muita cerveja, mas porque está tocando a mais de uma hora sentado em cima do engradado. Enquanto a cerveja alegrou o povo, apenas quadriculou sua bunda.

Na volta do banheiro você consegue fazer um prato com churrasco e maionese. Consegue pegar um copo de cerveja também. Sua esperança é comer e beber entre uma música e outra. Só que não tem intervalo entre uma música e outra, assim como não tem intervalo entre a nota mi e a nota fá. A esperança que espere. Afinal, é para isso que ela serve.

Cinco horas se passam e você já tocou de tudo, até parabéns pra você. A cerveja já acabou, a caipirinha já acabou, a carne já acabou, mas o domingo só acaba quando a televisão tocar a música do fantástico. Você ameaça ir embora e escuta a célebre frase: “Toca Raul!”.

Que alegria! “Toca Raul” é sua carta de alforria. Fim da festa. Mesmo que você tiver que tocar oito vezes Metamorfose Ambulante, dali não passa. São 5 fases. Todo músico conhece. Fase 1: Tocumaê! Fase 2: Tocaquela! Fase 3: Toca Roberto Carlos! Fase 4: Toca Raul! Fase 5: ressaca.

Você toca Raul e entrega o violão para um cara que aprendeu aqueles quatro acordes que dá para tocar qualquer coisa. Finalmente suas mãos voltam a ser suas. Você pega o prato com churrasco e o copo de cerveja. A cerveja está quente e o churrasco está frio.

Você volta para casa. Liga a televisão. Escuta a música do fantástico. Desliga a televisão. Dorme. No dia seguinte, acorda e percebe o lado bom da coisa ruim: você pulou a fase 5.

Prever o futuro não é questão de cartomancia, é questão de imaginação. É na imaginação que a coisa acontece antes de acontecer. Então, quando ele me fez a pergunta, eu vi o futuro. Era assim:

Eu diria a verdade. Ele ficaria irritado. A irritação se transformaria em raiva. A raiva se transformaria em vontade de matar o criador do incômodo, eu. Matar ele não podia. Era muito drástico e daria cadeia. Então, ele pensaria numa estratégia invisível e socialmente aceitável de vingança. A solução seria me proibir de usar a coisa.

Eu diria isso a ela. Ela me perguntaria como ele ficou sabendo. Eu diria a verdade. Ela ficaria irritada. A irritação se transformaria em raiva. A raiva se transformaria em vontade de matar o criador do incômodo, eu. Matar ela não podia. Era muito drástico e daria cadeia. Então, ela pensaria numa estratégia invisível e socialmente aceitável de vingança. A solução seria tortura psicológica, que me levaria a loucura, mas evitaria o óbito.

Mentir era tão fácil. Bastava uma mentirinha e pronto, deceparia numa só enxadada todos os infortúnios que estavam claramente visíveis na bola de cristal. E haviam várias mentiras ótimas na minha cabeça. Todas coerentes. Até irrefutáveis. Bastava escolher uma. Por que não?

Disse a verdade. Ele ficou irritado. A irritação se transformou em raiva. A raiva se transformou em vontade de matar o criador do incômodo, eu. Matar ele não podia. Era muito drástico e daria em cadeia. Então, ele pensou numa estratégia invisível e socialmente aceitável de vingança. A solução foi me proibir de usar a coisa.

Eu disse isso a ela. Ela me perguntou como ele ficou sabendo. Eu disse a verdade. Ela ficou irritada. A irritação se transformou em raiva. A raiva se transformou em vontade de matar o criador do incômodo, eu. Matar ela não podia. Era muito drástico e daria em cadeia. Então, ela pensou numa estratégia invisível e socialmente aceitável de vingança. A solução foi tortura psicológica, que me levou a loucura, mas evitou o óbito.

Previsto e posfeito.

A expectativa do pai é que a criança fale “papai”. A expectativa da mãe é que a criança fale “mamãe”. Eu não tinha esse tipo de expectativa, estava curioso para ver qual seria a primeira palavra que ela iria articular, fosse qual fosse. Mas não bastava dizer, ela teria que repetir, várias vezes, pois isso seria um sinal de aprendizagem adquirida.

Não lembro quanto tempo demorou para acontecer, mas lembro onde foi e como foi. Estávamos sentados ao redor da mesa da cozinha numa tarde de domingo, quando ela começou a balbuciar uma frase e balançar as mãos. Não dei muita atenção até que ela repetiu a mesma frase. Olhei para ela e fiz careta. Ela repetiu mais uma vez. Depois de novo. E de novo.

A mãe e a avó, que estavam comigo nesse momento divisor de águas, não entenderam a frase, então, expliquei. Ela disse: “carro tem teta”.

Ambas deram uma risadinha de “que engraçadinho você” e rapidamente desconsideram que aquela imagem surreal havia sido a primeira palavra pronunciada pela menina. Talvez elas estivessem esperando algo mais adulto como “carro tem pneu”. Mas a criança venceu e o carro ganhou tetas.

Durante algum tempo, eu e ela tivemos longas conversas através da sua primeira frase. Eu dizia “carro tem teta” e ela respondia “carro tem teta”, tanto para concordar como para discordar de mim.

Hoje em dia, no auge dos seus 13 anos, quando conto essa história ao redor da mesma mesa da cozinha, ela dá a mesma risadinha de “que engraçadinho você” e também desconsidera que essa foi sua primeira obra prima verbal.

Crescemos. Ficamos adultos. E adulto tem sempre a última palavra.

Voltei a acreditar em Papai Noel. Recomendo. E daí que não existe? Tem tanta coisa que não existe e que acreditamos, internet 3G, por exemplo. Além do mais, quem disse que ser ou não ser é bom critério? Por que não medir a realidade com a régua da simpatia? O que pode ser mais real do que um delicioso ho-ho-ho?

Na minha casa nunca teve chaminé. Nunca vi uma chaminé na minha vida. E daí? Voltei a acreditar que o bom velhinho desce pela chaminé mesmo sem chaminé.

Ser adulto não é fácil, deve ser castigo. Quanto mais a gente cresce, menos jingle bell e mais acabou o papel. Parece até que aprendemos o á-bê-cê só para soletrar IPTU, RG, CPF, CNPJ e ETC.

A tal da realidade é um monstro muito pior que o bicho papão. A única vantagem em ser adulto é que não somos mais obrigados a acreditar no que os adultos nos dizem. Estou fazendo uso do meu direito. Ressuscitei Papai Noel.

Aviso aos agnósticos! Quem vier com evidência científica para cima de mim, dizendo que Papai Noel não existe, que Papai Noel é meu papai, que vou me decepcionar. Primeiro, com todo respeito, vai se foder, vai pentear acelerador de partícula atômica. Depois, sobre realidade e decepção, deixe-me refrescar sua memória: gol da Alemanha!

Tocou um sino na sua cabeça? Então não deixe que nenhuma realidade estrague sua felicidade. Reassuma o volante e volte a acreditar em tudo que lhe faz bem. Eu voltei a acreditar em Papai Noel. Recomendo.

Você tem inveja de alguém? Se sim, imagine a pessoa cagando. É tiro e queda. A inveja desaparece imediatamente. Eu tenho inveja do jeito de dançar do Michael Jackson, por exemplo. O cara tem osso de borracha. O que faço? Imagino o cara dançando em cima da privada. Ele empina na ponta dos pés, ergue o chapéu, dá aquele grito de quem comeu feijoada de javali e senta. Sentou, cagou. Fim da inveja. Michael Jackson tem cu como eu, caga como eu, é mortal como eu.

Outra celebridade que vejo cagando é Chico Buarque. Como não invejar seu talento para metáforas? Então, rotineiramente, o vejo cagando em um banheiro com formato de Zepelim. Chico senta na privada, faz cara de quem está vendo a banda passar e taca bosta na Geni. Depois dá descarga cantando: “Amanhã vai ser outro dia…”

Tenho inveja de pessoas comuns também. Todas cagonas.

Se você tem inveja de mim, não se acanhe, pode me colocar para cagar quantas vezes quiser. Eu também cago. Todos cagamos.

Fiz um comentário e o taxista não respondeu. Fiquei aflito. Desconfiei que o jogador fosse da família dele. Depois percebi que o taxista não estava me ouvindo, estava ouvindo o jogo. Um taxista que concordasse com o cliente era o mínimo que esperava, mas para evitar uma bola na trave, remediei:

— O senhor é corintiano?
— Já fui, igual meu pai!

Um vira-casaca! Aquele era o segundo caso que conhecia. O primeiro era um amigo de infância.

— Por que mudou de time? — perguntei.
— Culpa do meu pai.
— É sempre culpa do outro! — pensei.
— Antes de ser taxista, eu trabalhava de metalúrgico — ele disse — daí inventaram um teste de aptidão, e quem não passava no teste, era demitido. Não passei nem perto.
— Foi demitido?
— Fui sim, mas quem se chateou mesmo foi meu pai.
— Ele brigou com você!
— Muito pior! Eu era menor de idade e não podia assinar documento, então, meu pai foi receber o dinheiro da rescisão no meu lugar. Maldito dia!
— Maldito, por quê?
— Para me castigar, meu pai bebeu todos meus direitos em cachaça.
— Vixi! Gastou todo seu dinheiro?
— Num dia só. E ficou caído bêbado no chão do boteco.
— E daí você mudou de time?
— Sim, de tanta raiva!

© 2024 · Marcelo Ferrari