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Tag: Amizade

O sino da catedral toca igual ringue de boxe. Azul contra vermelho, direita contra esquerda, certo contra errado, o bem contra o mal. A multidão faz apostas urrando, mas os lutadores não escutam nada, estão usando tampões nos ouvidos. Socos, socos, loucos.

De repente, o lutador vermelho é golpeado na cabeça e perde os tampões. Imediatamente, entre os gritos histéricos, ele escuta uma voz dizendo: “Eu te amo”. A frase está saindo da boca do seu oponente, junto com os socos.

O lutador vermelho começa a desviar dos golpes do seu oponente e repetir uma frase de resposta, mas o lutador azul não escuta por causa dos tampões. O lutador vermelho, decide golpear seu oponente na cabeça, com toda sua força, para retirar os tampões dele. Funciona. Os tampões do lutador azul caem e ele escuta a voz do lutador vermelho dizendo: “Eu também te amo”.

Os dois param de lutar.

A multidão continua gritando, mas dentro deles faz silêncio. O punho dos dois lutadores vão se abrindo vagarosamente. Seus corpos vão se aproximando e eles se abraçam. Todas as pessoas se aproximam e se juntam aquele abraço, atraídos por uma força estranha. Eu, você, pessoas de outras cidades, outros países, outros planetas, outras dimensões. Todos em um big-bang de marcha ré.

E o sino da catedral toca igual noite de natal.

Pitoco era um cachorro salsicha. Cachorros salsichas são fáceis de tratar e excelentes sirenes de polícia. Minha avó tinha um bando deles. Morriam uns, nasciam outros. Ela sempre tinha uns quatro pela casa. O método de preservação da raça era a pouca-vergonha. O filho transava com a própria mãe e assim por diante. Enfim, mundo cão.

Pitoco era um dos oito filhotes da última ninhada. Ele era o único que ainda morava com os pais. Tinha dois irmãos que moravam perto, com a tia, no sítio vizinho, do outro lado do pasto.

Não sei por que a rixa. Talvez porque Pitoco tenha mamado no peito enquanto seus irmãos tiveram que se contentar com ração de fubá. Ou então, a tia tinha algum desafeto com a irmã. Seja o que for, o fato é que toda vez que Pitoco resolvia atravessar o pasto e visitar os irmãos, era atacado pela tia e pelos ex-companheiros de útero.

Uma vez, durante uma visita, Pitoco foi caminhando com quatro patas e voltou com três. Uma delas foi mastigada pela tia. O reverso também já havia acontecido. Os dois irmãos atravessaram o terreiro e foram escorraçados pelos tios.

Essa introdução é para explicar por que não deixei Pitoco me seguir até o canavial.

Estava descendo o pasto e Pitoco trombou no meu calcanhar. Virei para olhar e ele balançou as orelhas. Ameacei chutar sua bunda. Não funcionou. Tentei espantá-lo com um berro. Também não adiantou. Pitoco ia e voltava feito dor de cabeça.

Então, quebrei um galho de árvore e sapequei seu coro. Pitoco correu um pouco e me olhou triste, sem compreender porque estava sendo chicoteado. Dei a segunda lambada. Depois a terceira, até que ele desistiu de me seguir e voltou para casa.

Ao chegar no canavial, confirmei que a tia de Pitoco estava lá, como de costume. Se Pitoco tivesse me seguido, a surra seria feia e certa. Não sei se cachorro fica magoado e consegue perdoar as pessoas, mas não contei essa história para cachorro ler.

© 2024 · Marcelo Ferrari