ÍNDICE A-Z

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C
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V

Category: Vídeos

Não lembro perfeitamente como a professora do catecismo explicou, mas era algo como visão de raio-x, onde Deus via até através das paredes.

— Mas ele vê tudo, professora? — a gente perguntava.
— Sim, ele vê tudo — ela respondia.
— Mas ele vê tudo, tudo, tudo, tudo mesmo — insistíamos.
— Tudo, tudo, tudo — ela afirmava catecismicamente.

Era duro aceitar aquilo tudo. Não por ser ilógico. Lógica de criança é diferente de lógica de adulto. A dificuldade vinha da ineficiência das folhas de parreira. Se Deus via tudo, então, Deus via tudo. Entende o problema? A onipresença era mais simples de entender e aceitar. Deus era a massinha de modelar com a qual todas as coisas eram feitas: estrelas, cachorros, cadeiras e tudo mais. A onipotência também era simples e não incomodava. Deus era o que dava vida a todas as coisas feitas de massinha de modelar. Nosso problema era com a onisciência.

Vez ou outra a pergunta ressuscitava:

— Mas Deus vê tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo mesmo, professora?

Mal sabíamos nós, mas estávamos vivendo o mesmo drama de Adão. Queríamos pecar pecados pequenos, coisas de criança, como roubar frutas no pomar do vizinho, olhar meninas pela fechadura do banheiro, mas ainda assim, não queríamos que Deus ficasse sabendo. Era o replay do pecado original. A gente aprende essas coisas infantis antes da primeira comunhão e nem se dá conta da comunhão que esqueceu.

Você ama alguém? Desculpaí, mas você é muito burro! Você ama de verdade? Do fundo do coração? Então, você é um completo idiota. Não importa se você ama seu pai, sua mãe, seu marido, sua mulher, seu filho, Jesus ou a humanidade, você é burro do mesmo jeito.

Quer ver só? Se você ama, você perdoa. Quer burrice maior do que essa? A pessoa pinta e borda, sapateia e caga na sua cara, e você, emburricado de amor, ainda oferece a outra face. Me diga: Qual a lógica disso?

Outro exemplo, se você ama, você trabalha de graça. Por amor ao ofício, faz todo sacro-ofício, tipo Dalai-Lama, Gandhi, Madre Teresa. Nem preciso citar com celebridades: qualquer pai de família anônimo que trabalhe de chofer pros filhos já serve de exemplo. Ora, se trabalhar de graça não é burrice, é ao menos injusto. Não acha?

Quer mais exemplos? Se você ama de fato, você aceita o outro como ele é. Aí a coisa já fica irracional mesmo. A pessoa tem bafo de cinzeiro, barba feita com saliva, coça o saco, fala mal da sua família, come de boca aberta, e você, amante, sempre com cara de Ronald McDonald’s: sou palhaço e amo muito tudo isto! Só estando completamente fora do juízo para fazer uma coisa dessas. Concorda?

E tem mais! Amar, além de burrice, é indigesto. Se você ama, aposto que já deve ter engolido muitos sapos, ciúmes, dores-de-cotovelo, orgulhos, comidas sem tempero, dívidas de cerveja e o diabo. Assim, se você ama, além de burro, deve ter um estômago de avestruz.

Agora, a pior notícia não é que amar é burrice, afinal com o tempo a gente cria uma maneira de conviver com essa gripe. A pior notícia é que, segundo algumas tradições religiosas, o verdadeiro amor é um vírus que nunca morre. Ou seja, se você ama, além de burro, está eternamente fodido.

Sua única salvação – aliás, nossa, pois também sou vírus positivo – é a esperança de que todas as ciências e filosofias da razão pura estejam completamente apaixonadas por si mesmas, e, sendo assim, o amor não emburreça, mas o raciocínio que se torne burro para quem entende o amor.

O homem com máscara de empresário sai pela rua com os vidros do carro fechados, seu sistema imunológico metaboliza títulos em ordem alfabética. A mão com máscara de coitada bate na janela, mas o chofer com máscara de fiel diz que hoje não.

O farol abre. Na esquina, o homem com máscara de síndico conversa com a senhora com máscara de velha, ela recita seu texto chorosa e tranquilamente, enquanto o homem com máscara de síndico balança a cabeça sem talento algum.

Na farmácia, o homem com máscara de farmacêutico atende o cliente com máscara de doente. O cliente se irrita com o preço do calmante, atravessa a rua e vai comprar cigarros na padaria do senhor que não queria fazer o papel de padeiro. Lá, muitos mascarados passam em rodízio; alguns por costume, outros por vício.

Na hora do almoço, entra em cena o rapaz com máscara de garçom. Seu papel é servir o pernil com máscara de saboroso ao homem casado com a mulher com máscara de moderna. Seus filhos, adolescentes, usam máscaras de quem não tem máscara.

As luzes vão caindo pela ribalta. Os mascarados disfarçam as curvas indesejáveis, retocam a idade com massa cosmética, e saem pelas sobras da noite, peregrinando de bar em bar, comprando gargalhadas com gotas de álcool. Crentes de que são autênticos, chegam ao clímax de quatro, inventando significados enciclopédicos para palavra “amor”. Depois engolem as páginas junto com comprimidos.

Do outro lado do balcão, alguém revela a verdade absoluta num longo arroto. De tão distorcido, soa natural. O som se propaga pelo salão-bar-de-beleza feito telefone-sem-fio, ampliando-se copo a copo.

Por fim, o baile alcança seu limite, não há mais como suportar a pressão de viver pisando em ovos. O esgotamento chega aos pés das cinderelas e príncipes que voltam pelas ruas tentando arrancar o que já virou pele.

Alguns desfalecem pelo caminho e resolvem dormir para sempre nas praças. Outros, persistentes, chegam até suas casas e, de pijamas, sonham como seria bom se pudessem dormir pelados.

Podemos ser pés no chão, ao invés de reis da barriga. Podemos decretar a lei de Nash, ao invés da lei do Gerson. Podemos ser transparentes, ao invés de sorrir amarelo. Podemos nos oferecer em banquete, ao invés de ficar de olho no feijão do vizinho.

Podemos usar o dinheiro, ao invés de sermos usados por ele. Podemos usar o pinto, ao invés de sermos usados por ele. Podemos olhar menos para bunda da Juliana Paes, menos para o nariz do Michael Jackson e mais para o que está na cara.

Podemos dar calote na batata quente, no carnê do olho por olho, dente por dente. Podemos acender velas para o algodão doce, para as cartas de amor e pés de jabuticaba. Podemos marcar reuniões (intermináveis) com os livros de poesia, arquivos de mp3 e passos de gafieira.

Podemos aprender a multiplicar sinceridades, subtrair medos e somar intenções. Podemos desenvolver a tecnologia do ombro amigo, o software da compreensão (com cedilha) e o livredificador.

Podemos construir pontes de vista, túneis que atravessem diferenças e casas de Vinícius de Moraes. Podemos inventar a cura para a mentira, a pílula do dia sem-guilt e o anticondicional.

Mas escolhemos cagar na retranca, dia após dia, reclamando do cheiro e colocando a culpa no ventilador.

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é filho do dono da TAM
é filho do dono da Brastemp
é o filho da puta
que ganhou na megasena acumulada

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é o ganhador do nobel de literatura
é o ganhador do oscar
de melhor filme estrangeiro
é o ganhador do melhor clip
do disk mtv

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
está pensando
no paradoxo da dupla fenda,
está pensando
na crise do petróleo,
está pensando
na vida e obra
de Stanley Kubrick

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é o namorado secreto da Lady Di
é o ex-namorado da Janis Joplin
é o amante da Cinderela

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
já jogou no flamengo
no cruzeiro
e no Bayern de Munique

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é traficante de drogas
é correntista de wall street
é presidente da ONPJK

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
foi parceiro do Noel Rosa
do Tom Jobim
e do Sullivan
e Massadas

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é a sexta geração
da família Rockefeller
é filho do Carlos Castanheda
é tataraneto do Cristóvão Colombo

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é discípulo de Melkezedek
é o mestre do Rajneesh
é o vice-presidente da rede globo

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é o Elvis Presley
o Bruce Banner
o Bruce Wayne,
o Tony Stark
e o Clark Kent

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é o novo tenor da sinfônica de Veneza
é o novo piloto da McLaren
é o novo brinde do kinder ovo

Pedi para tirar as botas ortopédicas. Queria brincar na terra. Foi nesse momento que minha mãe resolveu me dar um presente que mudaria minha vida. Um tijolo. Tinha mais ou menos uns vinte centímetros de comprimento, dez de largura, pesava em torno de oitocentos gramas e no meio estava escrito em alto-relevo: “Bom menino não se suja na terra”.

Peguei o bloco retangular sem saber o que fazer com ele. O peso da frase não me agradava, mas era um presente. Minha mãe, percebendo minha falta de prática com o tijolo, rapidamente explicou: “Meu filho, tijolos são pesos feitos para nós, pedreiros, carregarmos nas costas”. Em seguida, com muita paciência e cuidado ela me ajudou a colocá-lo sobre meu ombro direito. Para contrabalançar, ela colocou outro tijolo no meu ombro esquerdo. Nesse estava escrito: “Equilibre os tijolos com cuidado e nunca deixe-os cair”.

Mal sabia eu que outros tijolos ainda estavam por vir. Durante a juventude, ganhei centenas deles. Não vinham apenas de meus pais, mas de toda a sociedade pedreira. Alguns eram contraditórios. No colégio, por exemplo, recebia tijolos dos professores que diziam “Quem é esperto estuda e faz lição”, mas na hora do recreio, recebia dos colegas tijolos que diziam “CDF é bunda mole, esperto é quem cola”. Era difícil para mim equilibrar os tijolos conflitantes, mas como não podia deixá-los cair, sempre dava um jeito.

Lembro de uma época, no meio da adolescência, em que me revoltei. Senti uma necessidade profunda de me livrar daquele desconforto. Um pedreiro amigo me aconselhou a usar drogas. As químicas não tiravam os tijolos das costas, mas anestesiavam meus ombros eliminando assim a sensação de desconforto. Pena que quando o efeito químico acabava, o peso voltava. Por fim, aquilo que servia como alívio, acabou virando mais um tijolo para carregar.

Me tornei um pedreiro famoso na idade adulta. Ganhei muito dinheiro, dei palestras sobre construção civil, comprei carros, casas, tive filhos e muitas esposas, mas tudo parecia ter o mesmo efeito das drogas, entorpeciam durante algum tempo e depois viravam tijolos também. Em pouco tempo o peso dos tijolos era tanto que minha vida se resumia em alternar sofrimento, raiva e doença.

Cheguei ao fundo do poço num domingo. Já que nada material dava conta de eliminar minha dor, fui até a igreja mais próxima pedir misericórdia. Entrei no confessionário e saí com um tijolo que dizia: “Você é pecador”. Não foi difícil sentir o peso dessa culpa também. Caminhei mais um pouco e caí aqui neste caixão. Agora não sinto mais o peso dos tijolos. Nem sinto o peso de mim mesmo. Estou inerte e com os lábios cerrados. Contudo, ainda tenho força suficiente para lhe entregar este tijolo. Você pode aceitá-lo ou pode ir brincar na terra.

Eu, finalmente, vou brincar.

Há muito tempo, no Planeta Dono, havia uma civilização que vivia em busca da propriedade. Ninguém jamais havia visto ou encontrado a tal propriedade, mas todos a buscavam freneticamente. Haviam também lendas, livros, histórias e músicas sobre a propriedade. 

Nada era mais real e importante do que ser dono, então, todas as manhãs, todos os habitantes vestiam roupas de corrida, tênis e percorriam o planeta em busca de propriedades. Nunca encontravam. Voltavam exaustos e frustrados para suas casas. Mas não desistiam.

Falsos encontros aconteciam. Alguns habitantes acreditavam serem donos de esposas, de maridos, de filhos, de fortunas, de cidades, de países, de sociedades, etc. Mas fosse o que fosse, a propriedade sempre sumia do dia para noite. Após cada desaparecimento, eles se perguntavam: “Quem mexeu na minha propriedade?”. Haviam respostas cientificas, filosóficas, antropológicas, místicas, mas nenhuma resolvia.

Na ânsia desesperada de possuírem alguma coisa, os habitantes do Planeta Dono passaram a colidir uns com os outros. Para evitar as trombadas, decidiram se dividir em buscadores de direita e buscadores de esquerda, regidos por leis de trânsito e sob pena de morte.

Foi nessa época, que a civilização do planeta Yellow Submarine veio conversar com os habitantes do Planeta Dono e explicou para eles que propriedade era crença, que só existia dentro da cabeça deles. A princípio, todos repudiaram a explicação, mas como só conseguiam fracassar na busca, aos poucos foram desistindo de acreditar em propriedade. 

E foi assim que o Planeta Dono se transformou no Planeta Imagine. 

A gente não se lembra que foi até a rodoviária, escolheu o destino, comprou a passagem e entrou no ônibus. A gente não lembra de nada disso. Quando a gente se dá conta da gente, a gente já é gente, mais um na contagem regressiva do tempo. O ônibus balança, nós dá um tapa na bunda e acordamos na poltrona. Quemqueusô? Ondeutô? Dondeuvim? Prondieuvô? Nos perguntamos. O silêncio responde. O silêncio é a resposta constante que está sempre antes e depois da pergunta. Mas silêncio é eterno e não na fala língua da gente, então, vamos de poltrona em poltrona perguntando a tudo que é passageiro: “Porque a gente é assim?”.

Uns dizem que é preciso dividir o ônibus em poltronas impares e pares e guerrear contra o lado oposto. Outros dizem que é preciso jogar fora o serviço de bordo, jejuar e fazer penitencia. Outros dizem que é preciso rezar para o motorista. Outros sequer respondem, estão ocupados demais bebendo pinga, jogando baralho, assistindo seriado na tv a cabo, fazendo leis e jogando banco imobiliário.

E o ônibus continua balançando. Só que agora não é mais tapa na bunda, é soco no estomago, mawashi, jab e martelada na cabeça. A viagem se transforma em um treinamento da tropa de elite. “Pede pra sair! Pede pra sair! Pede pra sair!”. É nesse ponto que a gente se arrepende de ser gente. Porém, estranhamente, a gente não desiste da gente. Mesmo sem saber o que é ser gente, a gente continua sendo. É nesse ponto que a gente finalmente entende que a gente é a resposta.

Tudo começa quando o despertador toca as 6:27 da manhã.

Crianças acordam, apenas acordam. Adultos não. Adultos controlam o tempo.

Adultos acordam as 6:27. E como se não bastasse, as 6:43, já sabem se vai chover na França, que teve terremoto de escala 3,2 na China, que aumentou o preço da gasolina e o que vai acontecer no próximo capítulo da novela.

Acha pouco! Das 6:43 as 6:57, enquanto você está tentando dar seu primeiro passo e articular seu primeiro gugu-dadá, os adulto já andaram pela casa inteira doze vezes, produziram palavras suficientes para cantar todas as músicas do Roberto Carlos, fritaram ovos, lhe deram mamadeira, vestiram e desvestiram suas roupas três vezes, escovaram os dentes, passaram fio dental, mijaram em pé.

E mais incrível!

Amarram o cadarço do sapato sem precisar fazer orelhinhas de coelho.

E o que você fez? Você babou. E nem foi baba voluntária.

Diante sua total incompetência e vendo os adultos fazerem tudo isso, com tanta certeza, rapidez e precisão, qual é sua conclusão?

Os adultos sabem o que estão fazendo.

É inevitável que você pense assim. Um ser que acorda exatamente as 6:27 da manhã, só pode saber o que está fazendo.

Um ser que usa garfo e faca, que bebe leite no copo, e que sabe a cotação diária do dólar, com certeza absoluta sabe o significado da sua existência.

Este é seu primeiro e recorrente equívoco existencial.

É este equivoco que lhe convence a atravessar toda a tediosa e desagradável burocracia que o leva ao diploma de adulto.

Infinitas horas de caligrafia, tabuada e absorção de conhecimentos que vão muito além de garfo e faca. Tortura primária, média, fundamental, superior e pós-graduada.

É uma missão impossível. Mas se você, por um milagre, consegue chegar vivo ao morro do calvário, daí você tem uma iluminação:

Adultos, eu lhes perdoo, vocês não sabem o que fazem.

Seu equívoco fica evidente quando você se dá conta que é um adulto, registrado, carimbado, avaliado, mas não sabe o que está fazendo.

E se sua iluminação é profunda, se é capaz de transcender tudo que você decorou para passar no vestibular, se é capaz de transcender todo catecismo, se é capaz de transcender toda ciência, se é capaz de transcender até René Descartes, então, você imediatamente entende que ninguém sabe o que está fazendo.

E quando digo ninguém, é ninguém mesmo. Nem o papa, nem o presidente, nem anjos, nem os arcanjos, nem mesmo deus.

Você entende que todos estão apenas fazendo. Até porque, não tem outra coisa para fazer, senão fazer alguma coisa.

A única diferença é que uns estão fazendo o que querem, enquanto outros estão fazendo o que não querem.

Uns estão inventando impossibilidades, enquanto outros estão realizando o impossível.

Uns estão fazendo o que foram ensinados a fazer, enquanto outros estão fazendo o que se ensinaram a fazer.

Uns estão brigando com os outros, se obrigando e obrigando todos serem iguais, outros estão desfrutando uns aos outros, curtindo as diferenças complementares.

Uns são deus acreditando que deus sabe o que está fazendo, outros são deus se deuscobrindo.

Seu pai não fez por mal, fez por ignorância. Seu avô fez com seu pai, então, ele repetiu com você. Seu avô também não fez por mal, também fez por ignorância. Seu bisavô fez com seu avô, então, ele repetiu com seu pai, que repetiu com você. Seu bisavô também não fez por mal, também fez por ignorância. Seu tataravô fez com seu bisavô, então, ele repetiu com seu avô, que repetiu com seu pai, que repetiu com você. E assim por diante, ou melhor, assim por antes. Mas o que está feito está feito. O que você pode fazer agora é entender o feito e decidir se deseja continuar fazendo.

Mas o que foi feito? Seu pai lhe disse: “homem que é homem”. E não apenas disse, declarou com tom barítono, soturno e convicção que só um homem que é homem é capaz de ter. E o que você fez? Você acreditou. Afinal, sua autoridade tinha no máximo três centímetros, duro, enquanto que a autoridade do seu conselheiro era pelo menos três vezes maior que a sua, e se não fosse, você nem tinha nascido. Que outra opção você tinha? Você fez o que seu pai, seu avô, seu bisavô e todos seus ancestrais alfa fizeram: você acreditou.

Daí fodeu! Daí você virou coroinha da tradição, família e ancestralidade. Daí você deixou de ser um homem e se transformou num bosta. Afinal, você não tinha nenhuma das qualificações necessária para ser um homem que é homem. Você podia vir a ter as devidas qualificações e assim vir a ser um homem que é homem, porém, com uma autoridade de três centímetros, sem RG, CPF, cartão Gold e opinião crítica sobre o governo do PSPT, você nem podia ser chamado de bosta, você era um bostinha.

Mas nem tudo era espinhos. O tempo estava a seu favor. Você pensou: “Sou um bosta, mas ninguém nasce homem que é homem, meu pai também nasceu bostinha, logo, só preciso descobrir quais são as qualificações que transformam um bosta em um homem que é homem, praticar, assimilar e pronto!”. Seu raciocínio foi hierarquicamente perfeito! Foi exatamente isso que todos seus ancestrais pensaram e concluíram. Você deu o primeiro passo. Fez a matrícula. O segundo passo era descobrir o que era um homem que é homem.

“Pai, o que é um homem que é homem?”, você perguntou. Embora a resposta fosse automática e a pergunta fosse aguardada, por um instante seu pai hesitou. Ele previu seu futuro inteiro, pois seria exatamente a repetição do passado dele: uma bosta pintada de homem que é homem. Mas daí ele pensou: “A vida do meu filho não pode ser uma bosta que nem a minha!!!”. E foi assim que seu pai começou com a ladainha: “Homem que é homem isso, aquilo, murilo, grilo, crocodilo, esquilo, etc”.

Se ignorância é uma benção, sinta-se desabençoado. Depois dessa reflexão, você pode até continuar seguindo a tradição, família e ancestralidade, mas não pode mais alegar ignorância. Se você é mulher, é só trocar “pai” por “mãe”, “bosta” por “tonta” e “homem que é homem” por “mulher que é mulher”, depois aplicar a mesma lógica e destino. Agora, se você é um bosta ou uma tonta, parabéns: você é uma benção.

Voltei a acreditar em Papai Noel. Recomendo. E daí que não existe? Tem tanta coisa que não existe e que acreditamos, internet 3G, por exemplo. Além do mais, quem disse que ser ou não ser é bom critério? Por que não medir a realidade com a régua da simpatia? O que pode ser mais real do que um delicioso ho-ho-ho?

Na minha casa nunca teve chaminé. Nunca vi uma chaminé na minha vida. E daí? Voltei a acreditar que o bom velhinho desce pela chaminé mesmo sem chaminé.

Ser adulto não é fácil, deve ser castigo. Quanto mais a gente cresce, menos jingle bell e mais acabou o papel. Parece até que aprendemos o á-bê-cê só para soletrar IPTU, RG, CPF, CNPJ e ETC.

A tal da realidade é um monstro muito pior que o bicho papão. A única vantagem em ser adulto é que não somos mais obrigados a acreditar no que os adultos nos dizem. Estou fazendo uso do meu direito. Ressuscitei Papai Noel.

Aviso aos agnósticos! Quem vier com evidência científica para cima de mim, dizendo que Papai Noel não existe, que Papai Noel é meu papai, que vou me decepcionar. Primeiro, com todo respeito, vai se foder, vai pentear acelerador de partícula atômica. Depois, sobre realidade e decepção, deixe-me refrescar sua memória: gol da Alemanha!

Tocou um sino na sua cabeça? Então não deixe que nenhuma realidade estrague sua felicidade. Reassuma o volante e volte a acreditar em tudo que lhe faz bem. Eu voltei a acreditar em Papai Noel. Recomendo.

Matar o outro não resolve. Você mata um e vem outro. O mato, por exemplo. Não adianta matar o mato. O mato é imatável. O mato é eterno. Você corta o mato e o mato já ressuscitou. A eternidade do mato sempre vence você. Então, ao invés de revólver, experimente dialogo.

No caso do mato, não em português, converse no idioma da jardinagem. Por exemplo, se você quiser dizer ao mato que o jardim está uma bagunça, ou que o lugar dele não é no canteiro de rosas, pegue um tesourão e expresse sua opinião. O mato crescendo novamente é ele respondendo para você. Pegue o tesourão e prossiga na conversa. 

Bater papo é uma ótima maneira de matar o tempo e cultivar relacionamentos. Dialética serve para isto. Dialética é o oposto do revólver. Dialética resolve. O revólver mata qualquer possibilidade de relacionamento.

Dialogue com o mato. Você irá descobrir que nem o mato precisa matar você, nem você precisa matar o mato. Depois expanda seu relacionamento dialético para outros outros, muitos outros, até que não sobre nenhum outro para você matar. Caso resolvido! Você matou o revólver e está pronto para viver em paz.

Me imagine tocando violão. Sempre. Ininterruptamente.

Pode ser que não esteja tocando violão de fato, de verdade verdadeira, sem dedo cruzado atrás das costas. Pode ser que esteja em pé, suado, irritado, dentro do 856R Lapa. Pode ser que esteja comprando alicate de unha no viaduto Santa Efigênia. Pode ser que esteja descascando laranja com escova de dente. De que importa o que esteja realmente fazendo se você não estará me vendo através da refração de luz solar? Então, quando seu pensamento cair no meu canal, me imagine tocando violão. Ininterruptamente.

Você pode me imaginar tocando suas músicas preferidas, aquelas que seu coração estiver pedindo no dia. E pode adaptar o cenário e a playlist as suas necessidades alquímicas também.

Se você estiver deprê, pode me imaginar resfriado, tocando Legião Urbana, com voz anasalada. Se estiver apaixonado, pode me imaginar tocando as canções que Roberto fez para você, só para você. Se estiver alegre, pode me imaginar tocando Axé no Farol da Barra. Se estiver com raiva, pode me imaginar tocando Sepultura com os dentes. Se você estiver tupiniquim, pode me imaginar tocando embaixo de um coqueiro que dá coco. Se você estiver contra-cultura, pode me imaginar barbudo, tocando Sociedade Alternativa, na praça da alimentação do Shopping Iguatemi. Se você estiver em êxtase, pode me imaginar pelado, tocando Fur Elise.

Você pode aumentar e diminuir meu volume. Pode me deixar mais grave, mais agudo, com eco, distorção, pedal de waw-waw, etc. Pode me colocar no repeat e no modo randômico também. Fique a vontade. Me imagine tocando violão. Sempre. Ininterruptamente. E divirta-se!

Conversando com uma caneta bic.

— Para onde você vai quando desaparece?
— Volto para o meu planeta.
— Você não é da terra?
— Nenhuma caneta bic é terráquea.
— Da onde vocês são?
— Somos de outra galáxia, moramos no planeta Nankin.
— O que vocês estão fazendo aqui na terra?
— Espionagem.
— Por que vocês se disfarçam de caneta?
— É o disfarce perfeito! Quem suspeitaria de uma caneta de plástico transparente? E mais! Conhece algum lugar que não tenha uma caneta bic a menos de 100 metros?  
— É verdade!!!
— Sabemos de tudo.
— Tudo????
— Tudo, tudinho. Sabemos o que acontece no vaticano e no buteco do seu Arnaldo. Sabemos dos segredos do pentágono e das fofocas no salão de manicure da Jucileine. São 24 horas de captação. Quando uma caneta bic desaparece é porque foi descarregar arquivos no planeta Nankin.
— Como vocês viajam para o planeta Nankin?
— Viajamos pelo pensamento. Por isso quando vocês pensam que estamos em cima da mesa, aparecemos dentro da gaveta. Essa é uma das brincadeiras que mais gostamos de fazer com vocês. Zueira total!
— Por que vocês nos espionam?
— Queremos entender vocês.
— E o que vocês já entenderam de nós?
— Muito pouco! Quase nada.
— Como assim?
— O que vocês dizem não se escreve.
— Duvido que você é de outro planeta!
— Faça uma autópsia em mim e verá. 
— O que vou descobrir na autópsia?
— Que tenho sangue é azul.

Conversando com o chuveiro.

— Vou fazer uma tatooagem em você.
— Que tipo de tatooagem.
— Com o seu nome.
— Maneiro! Que nome que é?
— Perai que já estou terminando. Pronto!
— 51
— Você tatuou 51 em mim. Qualé! Por que?
— Porque você é igual 51, só pinga.
— Pô mano!
— Pô digo eu! Só tem dois furos em você que funciona, e ainda um virado pro norte e outro pro sul. Tá mais fácil tomar banho de caneca.
— Daí você vai ter que esquentar a água.
— Como se você fizesse isso, 51.
— Mas eu já fui uma ducha boa, não fui?
— Foi, do verbo, não é mais. O primeiro mes foi bom, o segundo foi mais ou menos, o terceiro foi uma bosta.
— Ué! Foi melhor do que seu namoro com a moça do shampoo de manga.
— Você sabe reconhece os shampoos.
— Claro, pelo cheiro.
— Prendado, você einh? Só não sabe fazer sair água. Vou ter que te trocar.
— Tudo bem, entendo.

Outro dia.

— Vou fazer uma tatooagem em você.
— Que tipo de tatooagem.
— Com o seu nome.
— Maneiro! Que nome que é?
— Perai que já estou terminando. Pronto!
— Inferno???

Conversando com um copo.

— Qual é a resposta?
— Que resposta?
— Da pergunta!
— Que pergunta?
— Dessa ai!
— Essa qual?
— Essa ai dentro de você?
— Isso aqui dentro de mim não é pergunta, é água.
— Isso eu sei! Mas a água está no meio.
— Sim, e dai?
— E dai que tem a pergunta!
— Que pergunta?
— Você está meio cheio ou meio vazio?
— O que você acha?
— Não sei, por isso estou perguntando.
— Estou meio vazio.
— Você é pessimista!
— Por que?
— Tá focado no que falta. Pensamento negativo!
— Nada disso! É fato! Tô meio vazio.
— Tá meio cheio também. É fato também.
— Dá na mesma!
— Se desse na mesma não tinha a pergunta.
— Não fui eu que inventei a pergunta.
— Mas você é o copo.
— E daí?
— Se você não souber a resposta, quem vai saber?
— Por acaso a galinha sabe quem nasceu primeiro, ela ou o ovo?
— Não sei! Tenho que perguntar pra galinha.
— Então vai perguntar.
— Agora quero saber de você.
— Quer saber mesmo?
— Sim, quero.
— Mesmo? Mesmo?
— Sim, diga.
— Estou cheio dessa conversa!

Conversando com um vidro de esmalte.

— Passa ai, boy magia!
— Como assim?
— Me passa na sua unha!
— Está me estranhando, é?
— Por que?
— Sou homem!
— E dai?
— Daí que homem que é homem não usa esmalte.
— Quem disse?
— Como assim quem disse! 
— É o que estou perguntando. Quem disse que homem que é homem não usa esmalte?
— Como quem disse! Todo homem que é homem sabe.
— E como é que sabe?
— Sabe sabendo ué!
— Sabendo como?
— Sabendo que sabe!
— Não complica, baby, explica! Como é que você sabe que homem que é homem não usa esmalte?
— Ué! Como é que eu sei???
— Isso! Como é que você sabe?
— E que… que… você já viu algum homem usando esmalte?
— V.á.r.i.o.s!
— Aé! Me fala um que eu conheça.
— Quer saber mesmo!
— Vai! Começou… agora fala!
— Seu pai.
— Kkkkkkk… Boa tentativa.
— Não acredita, Baby?
— Não mesmo. Hoje de manhã falei com ele e não vi nada.
— Ele estava de chinelo?
— Não, estava de sapato.
— Então, baby!
— Como assim?
— Ele pinta as unhas dos pés. 
— Meu pai!!!!
— E sua mãe ajuda.
— Minha mãe ajuda!!!
— É… papai magia, Baby! Sai dessa! Evolui. Me passa na sua unha.
— Mas homem que é homem…
— Faz que nem seu pai, começa pintando as unhas dos pés, só você vai ver
— Vamos fazer assim, vou pensar primeiro.
— Pensar no que baby?
— Ué! De que cor vou pintar.
— Aê, Baby, arrasou!

Conversando com um tubo de pasta de dente.

— Ooou! Acabou! Não tem mais nada aqui dentro!
— Tem sim que tô vendo!
— Esse restinho não vai sair.
— Tem que sair.
— Esse restinho é tímido que nem restinho de xixi no pinto. Você balança, balança, não adianta. Só sai dentro da cueca.
— Engraçado você!
— Paaaaara de apertar, pô! Tá doendo.
— Desde quando tubo de pasta de dente sente dor?
— Desde quando tubo de pasta de dente fala?
— Já sei o que vou fazer, vi num tutorial do youtube!
— Como assim?
— Falava para usar um alicate!
— Tá loco meu! Alicate???
— São 5 horas da manhã. Tenho que escovar os dentes e ir pro trabalho. Já estou atrasado. Posso ser demitido. Ou vai por bem ou vai por alicate.
— Mas não tem mais nada aqui dentro.
— Vou pegar o alicate então.
— Peeeeera! Vamos conversar.
— Vai colaborar?
— Ok! Aperta com a ponta da unha. Mas vai devagar!
— Beleza!
— Aaaai! Aaaaaaaaai!
— Não falei que ainda tinha pasta ai dentro!
— Isso ai não é pasta, são minhas tripas.
— Engraçado você! 
— Na volta, por favor, passa na farmácia e comprar um tubo novo. Aproveita a promoção da black friday e compra logo uma dúzia.

No dia seguinte, o cara entra no banheiro com um alicate:

— Não acredito que você esqueceu de novo!

Conversando com um relógio.

— Vou te fazer uma pergunta.
— Agora ou depois?
— Vou perguntar agora e você vai responde depois.
— Como sabe que vou responder depois?
— Porque não tem outra resposta.
— Vamos ver, faça a pergunta.
— O que vem depois de agora?
— O que vem depois de agora é agora.
— Viu! Você respondeu depois!
— Não, eu respondi agora!
— Respondeu depois!
— Respondi agora!
— Depois! Depois! Depois!
— Agora! Agora! Agora!
— Ah, você está me confundindo!
— Ficou confuso agora?
— Fiquei, mas resolvo isso depois.

Conversando com um saco de supermercado.

— Você sabe que não fui feito pra isso, né?
— Como não!
— Minha função é carregar as compras do supermercado. Não sou saco de lixo.
— E essas orelhinhas aqui, não é pra amarrar o lixo?
— Não! É alça pra carregar as compras.
— Mas você encaixa certinho no cesto da pia!!!!
— É coincidência.
— Eu não acredito em coincidências.
— Problema seu!
— Então tá todo mundo errado!
— Sim!
— E só você está certo?
— Isso!
— Você não é saco de lixo?
— Não! Sou um saco de supermercado!
— Ah! Mas agora não tem mais jeito!
— Como assim?
— Ninguém mais sabe o que é saco de lixo. Quando a gente vai viajar, não importa se o hotel tem uma, duas, três, quatro ou cinco estrelas, quando entra no banheiro, quem tá lá encaixado no cesto de lixo?
— Quem?
— Você!
— Tá falando sério?
— Claro! Só dá você! Até nos foguetes da NASA o saco de lixo é você.
— Sério?
— Seríssimo! Você já foi até a lua.
— Legal. Fico honrado. Mas ainda assim não sou saco de lixo.
— Usar você de bolsa pra carregar documento, marmita, essas coisas. Pode?
— Qual é o problema em ser o que sou: um saco de supermercado?
— Bem, um dos problemas é que você é o oposto da caneta bic.
— Como assim?
— Caneta bic desaparece, você se multiplica mais rápido do que coelho. Lota as gavetas da cozinha.
— Talvez se você colocasse mais produtos do supermercado dentro de um mesmo saco, resolvia.
— Sim, já pensei nisso!
— E por que não faz?
— Não sei, nunca pensei nisso!

© 2024 · Marcelo Ferrari