ÍNDICE A-Z

A
C
P
V

PROSA

— A humanidade é um lixo! — diz a voz agressiva e convicta.

Olho para trás a fim de reconhecer o autor e tentar entender o motivo.

— A humanidade é um lixo! — ele repete.

Investigo o dono da frase de cima a baixo. Sua pele é encardida. Usa um bigode de bangue-bangue totalmente fora do horário nobre. Veste um pijama estampado de sujeira. Calça as mesmas havaianas das top models, mas desfila sem nenhum charme.

— A humanidade é um lixo! — ele diz novamente.

O sujeito sujo está ao lado de um camelô que vende café da manhã por um real. Bolo e chocolate quente. Não está pedindo comida. Está olhando para uma mulher que parou ali.

— A humanidade é um lixo! — ele insiste, olhando para mulher.

A mulher permanece tranquila, não o recrimina. Frustrado com a falta de reação da mulher, ele direciona sua afirmação para o camelô.

— A humanidade é um lixo e eu tenho pavor de mulher!

O camelô faz cara de poisé. O sujeito sujo volta a falar para mulher.

— A humanidade é um lixo e eu tenho pavor de mulher!

A frase é o refrão de uma ferida aberta. Talvez a mulher sinta a mesma dor. Talvez o que está saindo da ferida dele, entra na ferida dela como uma transfusão de traumas, como um abraço de duas pessoas sem braços.

Mas por que o camelô não dá logo um fim no sujeito que está espantando a freguesia? Por que a mulher não vai embora? Por que a humanidade é um lixo? Por que parte de mim concorda? Por que outra parte discorda? E pior! Por que o sinal abriu e eu continuo assistindo a cena?

— A humanidade é um lixo! — ele persiste.

A mulher esfrega as pálpebras. O camelô retira um guardanapo de papel do saquinho de supermercado e entrega para ela enxugar as lágrimas.

O sujeito sujo se cala. Talvez esteja com vontade de dizer algo, qualquer coisa, além daquela frase que já não faz mais sentido. Só que ele não sabe falar, só sabe gemer feito animal.

Então, o sujeito se aproxima do cesto de lixo, pega o guardanapo molhado de lágrimas que a mulher jogou ali, e põe na boca, feito hóstia.

A mulher abre um sorriso na contramão da rotina, passa os dedos úmidos na cabeça encardida do sujeito e desaparece dentro de um ônibus lotado.

A humanidade é um luxo! Eu penso.

Não lembro perfeitamente como a professora do catecismo explicou, mas era algo como visão de raio-x, onde Deus via até através das paredes.

— Mas ele vê tudo, professora? — a gente perguntava.
— Sim, ele vê tudo — ela respondia.
— Mas ele vê tudo, tudo, tudo, tudo mesmo — insistíamos.
— Tudo, tudo, tudo — ela afirmava catecismicamente.

Era duro aceitar aquilo tudo. Não por ser ilógico. Lógica de criança é diferente de lógica de adulto. A dificuldade vinha da ineficiência das folhas de parreira. Se Deus via tudo, então, Deus via tudo. Entende o problema? A onipresença era mais simples de entender e aceitar. Deus era a massinha de modelar com a qual todas as coisas eram feitas: estrelas, cachorros, cadeiras e tudo mais. A onipotência também era simples e não incomodava. Deus era o que dava vida a todas as coisas feitas de massinha de modelar. Nosso problema era com a onisciência.

Vez ou outra a pergunta ressuscitava:

— Mas Deus vê tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo mesmo, professora?

Mal sabíamos nós, mas estávamos vivendo o mesmo drama de Adão. Queríamos pecar pecados pequenos, coisas de criança, como roubar frutas no pomar do vizinho, olhar meninas pela fechadura do banheiro, mas ainda assim, não queríamos que Deus ficasse sabendo. Era o replay do pecado original. A gente aprende essas coisas infantis antes da primeira comunhão e nem se dá conta da comunhão que esqueceu.

Olho pela janela do táxi e vejo um ônibus.

Viajo na ideia que a vida é um coletivo de almas. Uns sobem, outros descem, fica cheio, vazio, meio-vazio, meio-cheio. E cada ponto é final e partida.

Raimundos e fundos, Veras e esperas, Ritas e ritos, Dolores e dores, Celestes e Socorros. Todos dividindo o mesmo hálito, espaço e destino.

De repente, um calor clandestino, misto de cumplicidade e ternura, me incendeia o peito.

Olho pela janela do ônibus e vejo um táxi.

Está consumado!

Está em dúvida se encontrou sua alma gêmea? Pergunte ao candidato/a qual é a revista que ele lê. Se Forrest Gump é capaz de conhecer as pessoas pelos sapatos, por que não confiar em quem faz pesquisa de mercado? O cupido agradece. As cartomantes é que não vão gostar. Conheço um rapaz que passou um ano namorando uma loira com cara de Faça Fácil. Só na virada do milênio foi descobrir que era Capricho. Se tivesse perguntado antes, não precisava ter comprado tanta Playboy. Uma amiga, leitora de Contigo, foi para o litoral e pensou ter encontrado sua cara metade rolando na areia. Não perguntou a revista. No domingo seguinte, teve que trocar o programa do Gugu pelo jogo ducuríntia. Seu pretendente era leitor de Placar, quer dizer, não lia, olhava as fotografias. Outro amigo, adepto do tomate e rúcula, se encantou com uma suposta leitora de Boa Forma que se revelou uma Ana Maria fazendo dieta. Vá além da capa. Investigue a preferência editorial do seu pretendente. Melhor passar vergonha do que passar raiva.

Cidade não tem noite, sois eletrônicos acendem com o timer e o espetáculo da escuridão, mesmo presente, fica invisível. Sempre morei na cidade. Quase sempre. Tempo suficiente para que minhas retinas se esquecessem que são luas. Certa vez, enjoado da avenida paulista, fui morar no sítio. Lá, quando ficava noite, ficava noite. E tanto, que no quarto onde dormia, não fazia diferença estar de olhos abertos ou fechados.

Muitas vezes, acordava antes do sol, da memória e até de mim mesmo para ficar olhando o breu. Impressionante como o quarto encarnava no espaço com a luz do dia. Surgia a porta bege, a janela de ferro e o armário Marabraz. Quanto mais luz maior era meu estado catatônico.

— Altura!!!! Largura!!!! Profundidade!!!! De onde vem isso? Não estavam aqui! Tenho certeza! Será que foi o sol que trouxe? — pensava.

De repente, o galo cantava. E eu já não era o único bicho no mundo querendo acordar o mundo para o absurdo que o mundo é.

Você ama alguém? Desculpaí, mas você é muito burro! Você ama de verdade? Do fundo do coração? Então, você é um completo idiota. Não importa se você ama seu pai, sua mãe, seu marido, sua mulher, seu filho, Jesus ou a humanidade, você é burro do mesmo jeito.

Quer ver só? Se você ama, você perdoa. Quer burrice maior do que essa? A pessoa pinta e borda, sapateia e caga na sua cara, e você, emburricado de amor, ainda oferece a outra face. Me diga: Qual a lógica disso?

Outro exemplo, se você ama, você trabalha de graça. Por amor ao ofício, faz todo sacro-ofício, tipo Dalai-Lama, Gandhi, Madre Teresa. Nem preciso citar com celebridades: qualquer pai de família anônimo que trabalhe de chofer pros filhos já serve de exemplo. Ora, se trabalhar de graça não é burrice, é ao menos injusto. Não acha?

Quer mais exemplos? Se você ama de fato, você aceita o outro como ele é. Aí a coisa já fica irracional mesmo. A pessoa tem bafo de cinzeiro, barba feita com saliva, coça o saco, fala mal da sua família, come de boca aberta, e você, amante, sempre com cara de Ronald McDonald’s: sou palhaço e amo muito tudo isto! Só estando completamente fora do juízo para fazer uma coisa dessas. Concorda?

E tem mais! Amar, além de burrice, é indigesto. Se você ama, aposto que já deve ter engolido muitos sapos, ciúmes, dores-de-cotovelo, orgulhos, comidas sem tempero, dívidas de cerveja e o diabo. Assim, se você ama, além de burro, deve ter um estômago de avestruz.

Agora, a pior notícia não é que amar é burrice, afinal com o tempo a gente cria uma maneira de conviver com essa gripe. A pior notícia é que, segundo algumas tradições religiosas, o verdadeiro amor é um vírus que nunca morre. Ou seja, se você ama, além de burro, está eternamente fodido.

Sua única salvação – aliás, nossa, pois também sou vírus positivo – é a esperança de que todas as ciências e filosofias da razão pura estejam completamente apaixonadas por si mesmas, e, sendo assim, o amor não emburreça, mas o raciocínio que se torne burro para quem entende o amor.

Resolvemos montar uma banda e cada moleque escolheu um instrumento. Só que ninguém sabia tocar o instrumento escolhido, então, fomos todos para a escola de música aprender. Eu escolhi tocar guitarra, mas como não tinha uma, me matriculei na aula de violão.

Passei as férias tentando tocar os três primeiros acordes que aprendi. Certa tarde, quando já estava exausto, o violão resolveu conversar comigo. Toquei um pouco e percebi que ele dizia: “Nana nana é, nana nana é”. Pude sentir uma frase vindo pela mangueira da imaginação. Continuei tocando e a frase jorrou monofônica: “Anda jacaré, anda jacaré”.

Como a letra ficou pouca, resolvi aumentá-la no dia seguinte. Peguei o violão e coloquei o jacaré para andar. De repente, surgiu uma segunda estrofe: “Só mais um passinho”. Senti que estava prestes a parir minha primeira composição. Toquei mais um pouco e a canção surgiu completa: “Anda jacaré / só mais um passinho / o rio já está chegando / anda jacaré”.

E foi assim que me tornei compositor.

Leio crônicas andando de bicicleta. Transformo os textos em arquivos de mp3, coloco no celular, plugo o fone de ouvidos e pronto: biciblioteca. Atualmente estou ouvindo 708 crônicas maravilhosas. Peguei na internet. Memorizei o número 708 porque tive que dar 708 espaços entre as crônicas para transformar os 708 parágrafos em 708 arquivos de mp3.

As crônicas estão em ordem alfabética de autores. Começa com Adélia Prado e termina com Zuenir Ventura. Eis o motivo do título escandaloso. Arnaldo Jabor entrou e não saiu mais.

Fiquei contente e triste quando Jabor chegou aos meus ouvidos. Contente porque gosto do cara, triste porque o cara que eu gosto só gosta de política. Exagerei e generalizei. Mas Jabor também exagera e generaliza. Só estou devolvendo o veneno.

Até gosto de política, não gosto de 119 crônicas de política contra uma só de amor, poesia e prosa. Mas Jabor não quer fazer amor comigo. Jabor quer me foder, quer descabaçar o Peter Pan e a Poliana que habitam em mim.

Jabor me conta do saneamento da pobreza. Quer me foder sem preliminares. Ao invés de flores, me entrega o exame de próstata da sociedade brasileira. Quando faz um floreio é apenas para me manter na sua cama de gato.

Jabor é o eterno replay do avião colidindo contra as torres gêmeas. Jabor é Ernesto, eu sou habitante da terra do nunca. Jabor é a mãe do Erasmo Carlos, eu sou criança não entendo nada. Jabor é o lobo mal humorado, eu faço cu doce.

Aperto o botão do celular e pulo para a próxima crônica. Jabor insiste. Aperto o botão de novo. Jabor insiste. Aperto o botão de novo. Crônica 130. Fim de jogo para Arnaldo Jabor. O sapo nem sempre entra na boca da cobra. Jabor ameaça reclamar. Alerto: democracia.

O homem com máscara de empresário sai pela rua com os vidros do carro fechados, seu sistema imunológico metaboliza títulos em ordem alfabética. A mão com máscara de coitada bate na janela, mas o chofer com máscara de fiel diz que hoje não.

O farol abre. Na esquina, o homem com máscara de síndico conversa com a senhora com máscara de velha, ela recita seu texto chorosa e tranquilamente, enquanto o homem com máscara de síndico balança a cabeça sem talento algum.

Na farmácia, o homem com máscara de farmacêutico atende o cliente com máscara de doente. O cliente se irrita com o preço do calmante, atravessa a rua e vai comprar cigarros na padaria do senhor que não queria fazer o papel de padeiro. Lá, muitos mascarados passam em rodízio; alguns por costume, outros por vício.

Na hora do almoço, entra em cena o rapaz com máscara de garçom. Seu papel é servir o pernil com máscara de saboroso ao homem casado com a mulher com máscara de moderna. Seus filhos, adolescentes, usam máscaras de quem não tem máscara.

As luzes vão caindo pela ribalta. Os mascarados disfarçam as curvas indesejáveis, retocam a idade com massa cosmética, e saem pelas sobras da noite, peregrinando de bar em bar, comprando gargalhadas com gotas de álcool. Crentes de que são autênticos, chegam ao clímax de quatro, inventando significados enciclopédicos para palavra “amor”. Depois engolem as páginas junto com comprimidos.

Do outro lado do balcão, alguém revela a verdade absoluta num longo arroto. De tão distorcido, soa natural. O som se propaga pelo salão-bar-de-beleza feito telefone-sem-fio, ampliando-se copo a copo.

Por fim, o baile alcança seu limite, não há mais como suportar a pressão de viver pisando em ovos. O esgotamento chega aos pés das cinderelas e príncipes que voltam pelas ruas tentando arrancar o que já virou pele.

Alguns desfalecem pelo caminho e resolvem dormir para sempre nas praças. Outros, persistentes, chegam até suas casas e, de pijamas, sonham como seria bom se pudessem dormir pelados.

O sino da catedral toca igual ringue de boxe. Azul contra vermelho, direita contra esquerda, certo contra errado, o bem contra o mal. A multidão faz apostas urrando, mas os lutadores não escutam nada, estão usando tampões nos ouvidos. Socos, socos, loucos.

De repente, o lutador vermelho é golpeado na cabeça e perde os tampões. Imediatamente, entre os gritos histéricos, ele escuta uma voz dizendo: “Eu te amo”. A frase está saindo da boca do seu oponente, junto com os socos.

O lutador vermelho começa a desviar dos golpes do seu oponente e repetir uma frase de resposta, mas o lutador azul não escuta por causa dos tampões. O lutador vermelho, decide golpear seu oponente na cabeça, com toda sua força, para retirar os tampões dele. Funciona. Os tampões do lutador azul caem e ele escuta a voz do lutador vermelho dizendo: “Eu também te amo”.

Os dois param de lutar.

A multidão continua gritando, mas dentro deles faz silêncio. O punho dos dois lutadores vão se abrindo vagarosamente. Seus corpos vão se aproximando e eles se abraçam. Todas as pessoas se aproximam e se juntam aquele abraço, atraídos por uma força estranha. Eu, você, pessoas de outras cidades, outros países, outros planetas, outras dimensões. Todos em um big-bang de marcha ré.

E o sino da catedral toca igual noite de natal.

Podemos ser pés no chão, ao invés de reis da barriga. Podemos decretar a lei de Nash, ao invés da lei do Gerson. Podemos ser transparentes, ao invés de sorrir amarelo. Podemos nos oferecer em banquete, ao invés de ficar de olho no feijão do vizinho.

Podemos usar o dinheiro, ao invés de sermos usados por ele. Podemos usar o pinto, ao invés de sermos usados por ele. Podemos olhar menos para bunda da Juliana Paes, menos para o nariz do Michael Jackson e mais para o que está na cara.

Podemos dar calote na batata quente, no carnê do olho por olho, dente por dente. Podemos acender velas para o algodão doce, para as cartas de amor e pés de jabuticaba. Podemos marcar reuniões (intermináveis) com os livros de poesia, arquivos de mp3 e passos de gafieira.

Podemos aprender a multiplicar sinceridades, subtrair medos e somar intenções. Podemos desenvolver a tecnologia do ombro amigo, o software da compreensão (com cedilha) e o livredificador.

Podemos construir pontes de vista, túneis que atravessem diferenças e casas de Vinícius de Moraes. Podemos inventar a cura para a mentira, a pílula do dia sem-guilt e o anticondicional.

Mas escolhemos cagar na retranca, dia após dia, reclamando do cheiro e colocando a culpa no ventilador.

Calçou a chuteira, entrou em campo, não é pai, nem filho, nem espírito santo. Calçou a chuteira, entrou em campo, não é doutor, nem músico, nem advogado, nem rico, nem pobre, nem petista, nem religioso, nem ateu, nem corintiano, nem nada. Calçou a chuteira, entrou em campo, não importa se prefere Brahma ou Antártica, Chico ou Caetano, esquerda ou direita. Calçou a chuteira, entrou em campo, tanto faz se tem dente torto, se usa cueca do avesso, se acredita em terra plana, se ama os Beatles e os Rolling Stones. Diploma não chuta a bola. Conta bancária não cabeceia. Posição política não dribla. CPF não desarma o atacante. Crença religiosa não faz gol. Calçou a chuteira, entrou em campo, é jogador

Donana vira o balde em posição de tambor e batuca uma folia de reis. As galinhas, hipnotizadas pelo som, vão surgindo das árvores, das cestas, das moitas, e até de outras dimensões. Donana enche o balde com grãos de milho, remexe com a mão e o tambor vira um chocalho. As galinhas giram feito mestre sala ao redor da porta-bandeira. Donana apanha um punhado de milho e arremessa ao ar. O terreiro fica salpicado de confetes amarelos. Frevo intenso. Naipe de cocoricós. Os foliões comem o carnaval. Sobra a quarta-feira de cinzas.

Sentou numa caixa de madeira, colocou o chapéu na frente e começou a tocar Asa Branca. Quando saí do banco, fui colocar algumas moedas no chapéu do sanfoneiro cego. Um transeunte chutou o chapéu bem na hora. Foi nota para todo lado. Corri apanhá-las antes que o vento as furtasse. Recoloquei tudo no lugar de origem, acrescentei minhas moedas.

Fui para banca de revista. Escolhi três almanaques ao acaso e pedi para o jornaleiro calcular o valor. Quando o jornaleiro falou o total, contei meu dinheiro e percebi que não tinha o suficiente. Retirei um almanaque do monte e pedi que o jornaleiro recalculasse.

O jornaleiro pegou meu dinheiro, colocou os três almanaques num saco plástico e me disse que o dinheiro não vinha ao caso. Agradeci e fui para o ponto de ônibus. Somei o preço dos almanaques. O tanto que faltou para pagar as três revistinhas foi o tanto que dei ao sanfoneiro.

Fim do caso.

Escrevi uma crônica falando do racha de sexta e o povo do racha de quarta ficou com ciúmes. Exigiu representatividade. Ainda bem que semana só tem sete dias. Vamulá cobrar mais um tiro de meta. Assunto não falta. Mas falar do que especificamente?

Tem várias maneiras de chutar uma bola e várias maneiras de descrever um racha. Péra! Eu disse chutar uma bola? Já sei! Vou falar do Chico. O racha de quarta é o racha do Chico. Pronto, já falei tudo! O que? Você não conhece o Chico? Vou descrever ele para você.

Na primeira vez que fui participar do racha, ele me pediu para pegar uma tampinha dentro de um saco de pano. Sacou que tipo de cara é o Chico? Chico é do tipo que joga futebol de tampinha e não futebol de panela. Nem tinha visto o Chico jogar ainda e ele já tinha feito um gol no meu conceito.

“O que você faz?”, Chico me perguntou. Minha resposta sincera é incompreensível: “eu vivo”. Afinal, o que mais tem para fazer na vida? Mas não ignoro os protocolos sociais, sabia que ele se referia a profissão. O problema é que não tenho uma. Não uma que sirva para responder de bate pronto. Improvisei: “Sou escritor”.

E foi assim que Chico, rotineiramente, começou a fazer uma brincadeira comigo após cada gol seu: “Ae escritor, coloca esse gol no seu livrolá!”.

Chico dribla e chuta muito bem. Aliás, seu jeito de chutar foi o que me inspirou a escrever essa crônica. Chico chuta de bico. Não qualquer bico. Bico no canto. Quase sempre raspando a trave. Pontaria de franco atirador.

Outro dia comentaram que esse é o segredo dele. Para mim, não é segredo, é explícito. Chico não é peito de pé, nem peito de peru, é arroz com dedão. Chico é gol de bico. Sem chute de bico o Chico fica chique e descaracteriza o cara.

Pronto, falei! Espero ter colocado no livrolá metade dos gols que o Chico já fez e me pediu para escrever. Espero também ter colaborado para deixar maiúscula uma habilidade considerada minúscula: o chute de bico.

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é filho do dono da TAM
é filho do dono da Brastemp
é o filho da puta
que ganhou na megasena acumulada

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é o ganhador do nobel de literatura
é o ganhador do oscar
de melhor filme estrangeiro
é o ganhador do melhor clip
do disk mtv

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
está pensando
no paradoxo da dupla fenda,
está pensando
na crise do petróleo,
está pensando
na vida e obra
de Stanley Kubrick

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é o namorado secreto da Lady Di
é o ex-namorado da Janis Joplin
é o amante da Cinderela

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
já jogou no flamengo
no cruzeiro
e no Bayern de Munique

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é traficante de drogas
é correntista de wall street
é presidente da ONPJK

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
foi parceiro do Noel Rosa
do Tom Jobim
e do Sullivan
e Massadas

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é a sexta geração
da família Rockefeller
é filho do Carlos Castanheda
é tataraneto do Cristóvão Colombo

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é discípulo de Melkezedek
é o mestre do Rajneesh
é o vice-presidente da rede globo

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é o Elvis Presley
o Bruce Banner
o Bruce Wayne,
o Tony Stark
e o Clark Kent

O cara da balada
com o kinder ovo na mão
é o novo tenor da sinfônica de Veneza
é o novo piloto da McLaren
é o novo brinde do kinder ovo

Maria parou em frente a gôndola e encarou o fetiche de páscoa que custava três sacos de feijão. Maria não sabia ser pagã, nem brincar de boneca. Mentiu para si mesma dizendo para moça do caixa que era para o neto. Quando o ovo de páscoa fez “bip”, Maria se sentiu escolhendo Barrabás. Ao fim da via-sacra, vestiu o avental vermelho que veio de brinde dentro do ovo de páscoa e foi lavar a louça. Maria não entendeu o triângulo azul com a letra “s” no meio do avental. Seria “s” de compreenção? O avental da mulher maravilha era a capa do super-homem.

Nove tiros. Ninguém quer sentar do lado da mulher melancia. A menina liga a webcan. Também hesito. Abundadela invadiu duas poltronas. São três adolescentes no youtube: “Hoje vamos contar uma coisa que todos fazemos e ninguém tem coragem de admitir”.

A ambulância chega no local. O rapaz morto ainda está vivo. Sento do lado da mulher melancia. Sorrio. As adolescentes fazem suspense. Repetem o assunto do programa: “Hoje vamos contar uma coisa que todos fazemos e ninguém tem coragem de admitir”.

O rapaz baleado não sabe morrer. Sente medo e segura na mão do enfermeiro dentro da ambulância. O ônibus entra no túnel. A mulher melancia fecha os olhos e sonha com a dieta de pepinos que irá transformá-la numa azeitona. O enfermeiro puxa a mão e explica para o rapaz baleado: “Sou pago para ser enfermeiro, não para ser humano”.

Desço do ônibus baleado pela falta de solidariedade, minha inclusive. As três adolescentes admitem, envergonhadíssimas, que bebem água em copo de requeijão.

Quanto mais ela tentava falar, mais sua língua desaparecia.

Deixou escapar tudo de uma vez:

— Achoquestougrávida!
— O que?! — reagi assustado.
— Vamos fazer um teste? — ela disse.

Tirou uma embalagem de dentro da bolsa e me deu. Era um teste de gravidez. Parecia uma caneta. Li as instruções. Bastava molhar a ponta da caneta na urina e depois juntá-la à tampa. Passados cinco minutos, se o mostrador estivesse vermelho, era gravidez, se estivesse branco, ufa!

— Só funciona com um dia de atraso — alertei.
— Era para ser hoje! — ela disse.
— Mas hoje ainda não acabou — argumentei.

Me cutucou as cinco da manhã. Levantamos da cama e fomos ao banheiro. Ela se sentou no vaso e molhou o bico do aparelho na urina. Juntei as partes e as coloquei sobre a pia.

— O que você acha do nome Maria? — ela perguntou, apontando para o mostrador vermelho.

Comecei a sentir as dores do parto.

Olhei no relógio e percebi que só haviam passado dois minutos e a bula havia enfatizado para esperar cinco. Peguei o aparelho na mão para ver de perto e o vermelho do mostrador foi ficando cor de rosa, depois rosinha, depois bege, até ficar sem cor. Ufa!

O filme parecia um blues tocado por um pianista bêbado no funeral da mãe. Se chamava “Cria cuervos”. Se você já assistiu, sabe que é atípico expor uma criança a tal conteúdo tétrico. Não sei onde minha vizinha estava com a cabeça para me levar com seu filho aquela sessão de cinema.

Eu nunca havia experimentado uma crise existencial, mas nesse dia, assistindo o filme, experimentei, mesmo sem saber que estava experimentando.

A protagonista do filme, uma menina da minha idade, não sabia usar as pálpebras para chorar, então, colocava a vitrola para chorar por ela. A música era sempre a mesma, com batida animada de circo, mas que ao percorrer o caminho até o coração, se transformava em um tango lento e denso.

Eu era moleque de rua, cavaleiro do Rei Arthur, matador de formigas, filho do sal e do sol. Aquele sentimento uterino não era bem vindo no meu corpo de batalha. Mas para o meu espanto, me cativou. Senti vontade de me encolher na cadeira do cinema e chorar igual a menina na tela.

Passados três dias, a mesma vizinha me deu um disco com a música do filme. Era um compacto de vinil. Coloquei o disco para rodar. Ao ouvir o sotaque espanhol e os metais estridentes, voltei ao jardim da melancolia.

Feito um viciado, passei a injetar aquela tristeza através da agulha da vitrola. Eu era feliz, não tinha motivo para tristeza, era apenas vontade de experimentar um sentimento inédito. Tanto que, passado algum tempo, virei o disco e voltei para a corte do Rei Arthur.

Os músicos montaram o palco no chão, ligaram os microfones, fizeram o tradicional “um, dois, três, som, testando” e começaram a tocar. Foi nesse momento que Bob Marley e Peter Tosh entraram em cena. Bob Marley era Macunaíma vestido de super homem. Peter Tosh parecia com Bob Marley, o original. Os dois começaram a dançar. Bob Marley abria os braços igual o cristo redentor e rodava em slow motion. Cada vez que completava 360 graus, colocava a mão na cintura e rebolava. Os pés de Peter Tosh deslizavam como se o chão estivesse untado com manteiga. Seu corpo se teletransportava de um ponto ao outro na velocidade do tamborim. Seu rosto produzia emoticons de êxtase. Peter Tosh e Bob Marley dançavam juntos e sozinhos. Um não percebia o outro. Aliás, ambos não percebiam ninguém, só percebiam a música. Quer dizer, a música, totalmente contagiante e inesquecível. Mas que agora só lembro desse trecho “Bob Marley, Peter Tosh”.

Lá vai o skatista dar utilidade recreativa ao mundo. Coloca o skate no chão. Três remadas. Buuuum! Fica decretado, pela lei da gravidade, que parede é rampa, que escada é gap, que banco é copping, que corrimão é escorregador. PRI (Publique-se, Registre-se, Intime-se).

Embarquei. Decolei. Chacoalhei no avião. Não caiu. Peguei outro táxi. Peguei balsa. Chacoalhei na balsa. Não afundou. Peguei ônibus. Chacoalhei no ônibus. Não quebrou. Puxei a mala pela rua de paralelepípedo. Cheguei na pousada. Fiz check in. Desfiz as malas. Fui no supermercado. Comprei água. Voltei para pousada. Sentei na cama.

Ufa! Havia acabado a correria, mas ainda não havia acabado o dia. Ainda dava tempo para um jantar de aniversário. Fomos para um restaurante cheio de plantas que toca bossa nova. Pedi sanduíche de atum com ricota. Ela pediu ravióli ao molho de tomate.

Qual o nome do peixe que caiu do telhado? Aaaaaaatum! kkkkk…

Na saída, minha esposa comprou um punhado de goiabinhas, me ofereceu uma, e disse: “Esse aqui é seu bolo de aniversário”. Segurei a goiabinha na palma da mão esquerda e cantei parabéns para mim batendo palmas com o dedão e o indicador. “Imaginei uma vela acesa e assoprei.

Não fiz nenhum pedido. Nem pensei. Quem iria realizá-lo? Deus? Voltei para pousada. Dormi. Acordei. Tomei café e fui correr na beira da praia. Coloquei o fone de ouvidos.

Segundo o código de defesa do consumidor, ainda estava no prazo de validade do desejo de aniversário. Então, lá vai…

…que nossas magoas caíam no chão, igual migalha de pão quando se limpa a roupa. Que a vaidade entre pelo cano feito água suja depois do banho. E que, finalmente, façamos juntos, o que nunca ninguém jamais irá conseguir fazer sozinho: sermos nós.

E seja o que dois quiser!

Era uma vez Piá, uma águia cega que não saia do ninho.

Piá sabia voar, mas tinha medo de trombar com as árvores. Certo dia, Piá ouvi uma voz dizendo que o dragão Roger estava a caminho e iria incendiar seu ninho. Piá não sabia o que fazer. Podia ficar ali e morrer queimada ou arriscar um voo e se salvar. Piá pensou que se voasse bem alto e nunca aterrissasse, não correria o risco de trombar com nenhuma árvore. Então, Piá se atirou no ar. Assim que Piá começou a voar, sua visão retornou mais forte do que nunca. É por isto que os descendentes de Piá enxergam longe e nunca colocam os pés no chão.

Era uma vez Roger, um dragão covarde que vivia numa caverna.

Quando Roger ouvia qualquer barulho, disparava um grito. O grito de Roger era tão poderoso que saiam labaredas de fogo de sua boca. Certo dia, Roger ouviu uma voz dizendo que devia sair da caverna, encontrar a montanha mais alta do mundo, subir no pico da montanha, e gritar — com seu grito mais forte — para uma águia que lá morava: “voe!”. Ao ver uma águia cega levantando voo, Roger livrou-se da covardia para sempre. É por isto que os descendentes de Roger sempre usam a força de seus imperativos para criar coragem.

Era uma vez Eguiberto, um lagarto correto e reto.

Eguiberto tinha mais de duzentas vértebras, mas não sabia como usá-las. Eguiberto precisava executar dezenas de manobras para entrar em buracos e fazer curvas. Certo dia, Eguiberto ouviu uma voz dizendo que devia andar pela mata até encontrar um bambuzal. Quando encontrasse, devia ficar observando o movimento dos bambus durante uma tempestade. Eguiberto fez isso e descobriu que se curvar conforme as circunstâncias não era sinal de fraqueza. É por isto que os descendentes de Eguiberto sabem que a reta depende da curva.

Era uma vez Dunga, um macaco sem rabo.

Certo dia, Dunga ouviu uma voz lhe dizendo que devia se inscrever na corrida de pular de galho em galho. “Como se não tenho rabo?”, Dunga se perguntou. A mesma voz lhe disse que deveria se alimentar com uma escama do peixe Sashi e confiar no seu instinto. Dunga fez isso e improvisando a cada pulo, venceu a corrida usando apenas as mãos. É por isto que os descendentes de Dunga sabem que a inteligência não está no que se tem, mas no que se é capaz de fazer com o que se tem.

Era uma vez Charlot, uma papa-léguas com unha encravada.

Charlot vivia sentada. Não consegui colocar os pés no chão de tanta dor que sentia no dedão do pé. Certo dia, Charlot ouviu uma voz lhe dizendo que devia ir até o rio, pegar uma escama do peixe Sashi e levar até o macaco Dunga. Se fosse bem rápida, não sentiria dor. Charlot concluiu a tarefa sem sentir dor. É por isto que os descendentes de Charlot estão sempre correndo para lá e para cá.

Era uma vez Sashi, um peixe de sangue quente.

Certo dia, Sashi ouviu uma voz lhe dizendo que devia subir o rio Vadi seguindo a corrente de água quente e encontraria uma papa-léguas na cabeceira. Sashi devia dar uma de suas escamas a papa-léguas. Sashi subiu o riu e encontrou com a papa-léguas. Arrancou uma de suas escamas e entregou para ela. É por isto que os descendentes de Sashi sabem controlar tão bem o quente e o frio e nadar mesmo contra a correnteza.

Era uma vez Toin, um sapo que só tinha uma moeda e precisava alimentar uma grande família.

Certo dia, Toin ouviu uma voz dizendo que devia gastar sua única moeda indo até a padaria, comprando pão e voltando pelo mesmo caminho. Toin fez isso e encontrou outra moeda no caminho de volta. Por isto que os descendentes de Toin nunca são avarentos, pois sabem que tem uma moeda na ida e outra na volta.

Era uma vez Zoer, um deus que sonhou que era sapo, peixe, papa-léguas, macaco, lagarto, dragão e águia.

Fiquei curioso de ver como ele flexionava o verbo humano. Fui de bicicleta. O templo era uma casa no bairro da Aclimação. Quando cheguei não tinha mais espaço nem para os sapatos empilhados na porta. Devagar e sempre consegui um lugar na escada. A banda mais hare krishna da cidade emendava um mantra no outro. Havia tambores, violões e uma cabaça com dentes de aço.

De repente, a musica parou. Um homem barbudo, vestido de branco, começou a descer a escada. Todos juntaram as mãos em posição de oração. Quando o homem chegou no palco alaranjado — aos olhos da platéia — já não havia mais homem ali.

Foi o início de uma psicanálise em ritmo de bossa nova. Duas palavras, três silêncios, quatro palavras, pausa. Perguntas e respostas. Contrariando a adoração coletiva, deus era humano. Ninguém percebia isso porque a delicadeza do deusólogo em apertar humanos, essa sim era sobrenatural.

Dona Florinha, Dona Zefa, Dona Neusa, Dona Regina, Dona Fátima, Donas do mundo, Donas da razão. Se o filho é pródigo, o apocalipse vem de chinelo. Pobres bundas carnais. Deus permite. Abençoa. Afinal, deus não tem mãe. Não moro mais com minha dona, mas durante a semana
vou almoçar no útero. Comida sem sal, água com gás, salada e sorvete. Meu quarto virou
sala de não estar. Saudade é arrumar o parto do filho que já cresceu. Minha mãe abre as asas
e, envergonhada, pede que volte para dentro da barriga. Respondo o que ela descobriu na hora do parto, com amor e com dor: — Ser mãe é deixar de ser dona.

Dizem que só é possível filosofar em alemão. Que nada! É possível filosofar em português, falando palavrão e jogando futebol. Eis a prova. No meio do jogo, após um fracassado chute a gol, Chico me explica a metafísica do futebol:

— É buceta! É buceeeeeta!

— Do que cê tá falando, Chico?

— Você gosta de buceta?

— Sim, mas do que cê tá falando?

— Do gol que você perdeu.

— E o que tem a ver gol com buceta?

— Gol é buceta! Mete o pé e faz o gol! Enfia a bola na buceta!

— Kkkkkkkk…

Quer mais filosofia que isso? A definição de Chico foi pura psicanálise. Freud ficaria com inveja.

Agora, relembrando e escrevendo, com um pouco de imaginação e sentimento de vingança, consigo ouvir Chico narrando o gol da final da copa do mundo de 2022 entre Brasil e Alemanha. O jogo está 6×0 para o Brasil, mas ainda não é o suficiente para dar o troco pela humilhação de 2014. É o último lance do último minuto de jogo. Chico está narrando o jogo em cadeia nacional:

“É agora ou nunca, nação brasileira! O relógio já passou dos 49 prometidos pelo árbitro. Neymar vai cobrar o escanteio. Chute fechado. O goleiro sai. Dá um soco. A bola fica na entrada da grande área. Sobrou pra Pedro… De frente pro gol!… Chuta, Pedro! Chuta que é buceeeeeta!

Goooooooooooooooooooooooool!

É buceeeeeeta! É buceeeeta! Gol histórico. Pedro! Pedro! Peeeeedro! Enfiou o pé na bola que entrou rasgando a rede e foi pro fundo da buceeeeta! Que golaço! 7×0 pra lavar a alma brasileira!

Chupa, Toni Kroos! Chupa, Beckenbauer! Chupa, Michael Schumacher!

É buceeeta, pooooorra!”

“Só faltou você escrever a crônica”, ela me disse.

Olha que sensacional! Essa crônica começa pela ausência da crônica. Fiquei contente. Não tem maior sinal de apreço do que sentir falta. Ninguém sente falta do que não gosta.

Na viagem anterior, havia escrito uma crônica por dia relatando os passeios. Escrevia e postava no grupo de whatsapp da família. Até quem não estava participando da viagem aproveitava a viagem. Ela sentiu falta das crônicas. Surpresa! Olha a crônica aqui! O que faltou foi saco para ficar digitando no teclado do celular. Agora cheguei em casa. Aqui é notebook porra! Vamos tocar esse ukulelê de letras chamado teclado.

É muita coisa para contar numa crônica só, então, vou me concentrar em descrever a paisagem mais bela que vi nessa viagem. Estava fritando de febre, puto com a brisa que vinha de todos os lados e fui me abrigar perto da piscina.

Eis que ouvi uma música de adulto sendo cantada com voz desafinada de criança: “Vou voltar na primavera / Era tudo que eu queria / Levo terra nova daqui / Quero ver o passaredo / Pelos portos de Lisboa / Voa /  Voa /  Que eu chego já…” .

Era a voz dela. Olhei na direção do som e revi o jardim do éden. Uma menina de nove anos, sentada na janela, viajando pelos melancólicos portos de Lisboa. Que inveja a serpente deve ter sentido da ingênua felicidade de Adão e Eva! Talvez por isso ludibriou ambos a comerem a maçã.

Naquele breve instante, ao vê-la cantando MPB na janela, quis colocá-la numa redoma para evitar que qualquer infortúnio retirasse um triz daquela felicidade. Mas é preciso sair da janela para ver a janela. Todos saímos. Alguns conseguem voltar. Espero que ela consiga.

O telefone toca. Vou atender. É Lima.

Deduzo que vou ficar uns vinte minutos por ali. Puxo uma almofada e me estico no sofá. No meio da conversa, ele menciona a palavra epifania.

— O que é isso? — pergunto.

— Epifania — explica Lima — é o momento sagrado da inspiração. Ontem, por exemplo, senti o cheiro do sabonete enquanto tomava banho e fui atacado por uma terrível epifania. Já faziam 3 anos que não conseguia escrever sequer um bilhetinho para minha esposa, mas bastou uma fungada naquele perfume barato de sabonete e as ideias começaram a despencar na minha cabeça junto com a água do chuveiro.

— O que você fez?

— Entre uma sabonetada e outra, comecei a rascunhar mentalmente uma carta de amor.

— Legal! Como era?

— O primeiro parágrafo era íntimo, falava de coisas que só nós dois sabíamos. O segundo e o terceiro, ampliavam meus sentimentos ao máximo. Seguia-se então uma passeata de versos doces e românticos. Quando terminei o banho, a carta já estava pronta, só faltavam alguns detalhes. Então…

— Então o quê!?

— Então, não sei por que, fiquei muito exigente.

— Exigente!?

— Eu li a primeira frase. Era ótima, mas achei que o verbo escolhido não estava encaixando. Meus sentimentos no segundo e no terceiro parágrafos eram verdadeiros, mas não eram poéticos. Para finalizar, desconfiei da passeata romântica, que me pareceu cansativa e piegas.

— Escreveu a carta ou não?

— O que você acha?

— Sim.

— Não! Minha epifania entrou pelo cano junto com a água suja.

— Credo!

— Mas você entendeu o que é epifania?

— Entendi e preciso desligar.

— Onde você vai?

— Estou com epifania nos dedos.

Olhei para Esteves, mas ele não estava. Seu peito vestia a mesma camisa, mas o sentimento não estava. As mãos continham cinco dedos, mas o toque não estava. O corpo pesava tanto quanto antes, mas o jeito, a calma, o humor, não estava em Esteves.

Minha primeira estratégia para mudar o mundo foi rir do mundo. Exorcistas usam enxofre, eu usava piadas. Quinze minutos de risada e qualquer cemitério de elefantes virava um pombal.

Usei estratégias sérias: arroz, feijão, bife e macarrão! Abandonei-as quando percebi que eram mágoas
jogando xadrez.

Comecei a tocar violão. Baby, leia na minha camisa! Aprendi a compor canções. Quando percebi que minhas letras tocavam mais que as notas, mudei de instrumento.

Fracassei em tudo. Era muita gente querendo mudar o mesmo mundo que eu. Muitos caciques. Aliás, só tinha caciques.

Decepcionado e rendido, respirei fundo e desisti. Depois respirei de novo, de novo, de novo. E entendi que não tinha a opção “tô fora”. Mudar o mundo era inevitável. Haviam apenas duas opções: peito aberto e peito fechado.

Escolhi peito aberto e nunca mais mudei de estratégia

Saio para ver a luz da tarde. Ela me oferece coração de boi. Agradeço a gentileza e recuso, não pelo gosto, mas pelos fiapos, que prevejo, ficarão entre os dentes.

Acendo o cedê-player. Ela me chama. Faço leitura labial: “Você está surdo?”.

Peço que desamarre o lenço suado que segura os cabelos cinzas e meto cazuza em seus ouvidos. Ela sorri quase virgem, depois cruza o espaço entre a cozinha e o futuro uma duzia de seis.

Abro uma garrafa de Chico Buarque e fico aguardando o desfecho da cena.

Ela liga a televisão na missa, lê a receita com a ponta dos dedos e joga farinha branca na bacia azul. O cachorro escarlate em volta dela.

O que será que me dá?

Ela arremessa a massa redonda sobre a mesa. Ah, se meu cavalo falasse inglês!

Entro na cozinha para beijar a estrela da cena. Ela está de olhos fechados, com as mãos abertas em oferenda, repetindo as palavras do padre eletrônico. O pão nosso de cada dia cilindrado sobre a mesa.

Preciso não dormir. Amém.

Eu acredito em bacalhau. Juro por tudo que há de mais salgado. Gomes de Sá não me deixa mentir. Sou brasileiro, acredito em banana nanica e banana terra dourada na manteiga. Banana verde, não. Dá azia. Acredito em tomate com sal. Pizza com tomate e torta de tomate. Suco de tomate é alucinação, coisa de baba ovo metido a uva. Acredito em sorvete de palito. Já acreditei em iogurte, natural e sobrenatural, até que meu estômago me mostrou a realidade dos flatos. Vinho só acredito vendo, tipo São Tomé, realidade doce e barata. Não acredito em vinho caro, nem que me paguem. Mas reconheço que esperar vinte anos para abrir uma garrafa é um ato de fé.

“Você não entende nada do que o Raul está dizendo”, o cara me disse. Fiquei indignado. Como não entendo? Entendo sim! Tô ligado! Tô sabendo! Eu manjo! Nem lembro mais quais eram as gírias da época para expressar sapiência, mas usei todas que vieram a cabeça. O cara não discutiu comigo. Apenas repetiu o mesmo desacato com outras palavras: “Você ouve, mas não entende”.

Muitos anos depois, lá estava eu, em estado de metamorfose ambulante, entrando de ray-ban pela sala de aula. Da porta até a cadeira fui homenageado com o coro: “Quem não tem colírio usa óculos escuros”. Fiquei careta na hora. Porra! É isso! É óbvio! O tal dos óculos escuros não é para proteger os olhos da claridade, é para disfarçar a metamorfose!

Eu não tava ligado! Não entendia! Não manjava!

Acordei cedo e fui tomar café na cameloa. Pedi bolo de fubá. A moça estava conversando, como de costume, com um cara que também, como de costume, aparecia na barracadela em horário nobre. O cara, como de costume, ignorou minha presença e continuou contando sua história de fantasmas.

A moça estava rindo a beça. Aproveitei o tema para contar sobre um susto que levei. Demos risadas juntos, os três. Pela primeira vez, depois de meses, o cara reconheceu minha presença alí e até fez um comentário como se eu fosse da família.

Na hora de ir embora, me despedi desejando bom dia. Eis que o cara se deu conta que havia conversado com outro fantasma: eu. Respondeu com um olhar que dizia: “Não pertencemos ao mesmo mundo! Você já se intrometeu demais! Vá embora!”.

“Claro que pertenço, até comungamos do mesmo café com leite!” pensei, mas não disse, pois são as palavras que separam o café do leite.

“A cor da sua camisa é solidariedade ao outubro rosa?”, um amigo perguntou.

Homem é assim mesmo, está sempre pensando em um jeito de dizer que o outro é viado. Aprendemos isso na infância junto com os palavrões e os 10 mandamentos do cidadão espartano. Menino usa azul, menina usa rosa. Não pode errar nem se for daltônico. Certa vez, um rapaz comprou uma chuteira puxada para o rosa e foi enviadado no primeiro dia de uso. Nunca mais usou.

Não sei se foi por causa do outubro rosa, mas na sequência da piada, alguém sugeriu: “Escreve uma poesia sobre nosso racha?”. A sugestão ganhou apoio e foi sendo repetida em coro. Coloquei a mochila em cima de uma cadeira e fui fazer alongamento. Começou uma gritaria: “Escreve ae! Escreve ae!”. No que eles estariam pensando ao pensarem em poesia.

“Se eu escrever vocês leem?”, perguntei.

“Claro!”, foi a resposta.

O homem é o único bicho que se olha no espelho. Um pedido como “escreve sobre isso”, é na verdade um pedido de “fale de mim, me espelhe, me conte, me crônica, me poesia”.

Começando pelo paraninfo no grupo, Jordão, figuraça. Depois Didi, o eterno 21. Ronaldinho bravo. Praum com “n”. Danilo tolerância zero. Pedro reclamando do time de merda. Juninho jogando simultaneamente no ataque e na defesa. Filipe fazendo careta. Tupi na banheira. Rodolfo apitando até o lance que não aconteceu. E claro, Frango, o pop star do racha, dançando macarena e mandando beijo para torcida invisível.

Se o racha fosse uma novela, renderia muitos capítulos. Mas se for retratar tudo e todos nessa poesia, que de fato é uma crônica, vou extrapolar todos os limites de um textão. Além do que, a regra espartana é clara: poesia é coisa de viado.

Passei dos acréscimos.

Não havia internet na época, então, de vez em quando, alguém chegava excitado com uma fita debaixo do braço. Não era pornô, era filme novo de skate. Os astros eram caras como Christian Hosoi, Tony Hawk, Tommy Guerrero, Rodney Mullen, entre outros. Festa estranha com gente esquisita, eu sei, porém, mais aguardada que final de copa do mundo. A molecada se amontoava na sala de televisão, olho duro, assistindo e vibrando com cada manobra na tela. Terminada a primeira sessão, imediatamente começava a segunda, com direito a pause, slow motion e comentários cheios de gírias. Dava para sentir o goforit brotando na molecada. Uma vontade louca de andar de skate que nos empurrava para frente, para cima e para novas manobras.

Barba por fazer, cabelo por fazer, bigode por fazer, cigarro por favor. Happy me confessa que o corpo fechado com três blusas é raiva. Humanos uh! As minas pá!

— Alegria é vida, se não faço antídoto, morro de veneno — ele me diz

Colam dois rappers no papelão de geladeira. O estranho no freezer sou eu: hippie e hope. Não é caô, é caos. Happy pisa na ponta do cigarro para economizar divã. Pede para o DJ colocar um MP3 no Macintosh e faz pose de B-boy.

Gargalhada no salão, enquanto meu coração Luiz Gonzaga e Gonzaguinha.

— Toma pra você.
— O que é isto, pai?
— É um problema.
— O que faço com isso?
— Sei lá! Se vira!
— Quero não, obrigado.
— Tarde demais, é seu.
— Como meu?
— Dei está dado.
— Já bastam os meus.
— Entendo, por isso te dei esse.
— Como assim?
— Devemos repartir o que temos.
— Você só tem problemas.
— Tinha! Muitos! Dei a maioria.
— Quer dizer que você guardou alguns problemas com você.
— Claro! Esse é o segredo.
— Não entendo.
— Se você der todos seus problemas não vai ter nada com o que se ocupar e isso será um enorme problema.
— Com quais você ficou?
— Só com os mais simples: regar as plantas, fazer café, etc…
— Do que se trata esse problema que você me deu?
— É um problema metafísico.
— Você não se interessa mais por esses assuntos?
— Nunca me interessei! Esse problema veio na herança. Seu bisavô era filósofo e passou o problema para o meu pai e meu pai me deu quando tinha catorze anos. É uma joia de família.
— Pai, sou homem, não uso joias.
— Problema seu!

SOBRE SER MACHO (MASCULINIDADE)

Homens não sabem expressar sentimentos, a não ser quando estão bêbados, por isso bebem tanto.
Homens acreditam que sofrimento é mimimi.
Homens acreditam que Deus é homem (macho).
Homens que reprimem o que sentem e pensam tem medo de homens que expressam o que sentem e pensam.
Homens não tem ouvidos (não sabem ouvir).
Homens perdem a saúde por não saberem perder.

SOBRE A CULTURA DO FUTEBOL

Gol é buceta (o que importa é fazer gol, foda-se o resto)
Pode errar todas as questões da prova, pode errar todas as regras de trânsito, pode errar o que for, mas nunca, jamais, pode errar o gol.
Quando você faz gol, você é deus, quando você erra, você é o diabo.
O maior pecado que uma pessoa pode cometer na vida é errar um gol.
Imoral é perder o jogo.
Antiético é perder o jogo.

SOBRE BOA CONVIVÊNCIA

É melhor viver com a porta aberta (expressar os sentimentos).
Quem enfia a faca não sente a dor, por isso, é importante gritar quando dói.
Seu problema comigo, não é problema meu, é seu.
Ser bom não é ser bonzinho.
Apontar o erro do outro só é bem vindo quando ele quer melhorar.
Não adianta conversar com quem quer ganhar. Diálogo só produz boa convivência entre pessoas que estão interessadas em melhorar.
Não tem diferença nem separação entre o futebol e a convivência humana, embora todos acreditem que tenha.

SOBRE MIM

Eu devo continuar fazendo o que sinto e acredito.
O simples fato de eu ser eu faz com que o outro me aprecie (embora nem todos).
Eu aguento o tranco de não me comportar como um macho dentro de um grupo de machos.
Eu prefiro perder o jogo do que perder o amigo.
Eu prefiro acreditar na amizade do que acreditar em Deus.

Dizer a verdade é fácil. Todo mundo já nasce falando a verdade. Mentir não, dá trabalho. Por isso leva um tempo até uma criança aprender a mentir. Mentiras não fazem sentido para as crianças assim como as metáforas. Se você disser para uma criança que fulano é cabeça de vento, ela vai querer olhar dentro da cabeça de fulano, se você disser que fulano é pé frio, ela vai querer colocar a mão no pé de fulano para sentir a temperatura.

Metáforas são mentiras. E são também a prova viva de que a mentira tem lugar no mundo. O que seria da poesia sem a mentira? O que seria do humor? O que seria da literatura? O que seria do teatro? O que seria do cinema? Enfim, o que seria da arte?

Onde há arte há mentira e onde há mentira há arte. E se esse enunciado sobre a mentira for verdadeiro, então, o futebol arte deve ser um grande mentiroso. E é! A mentira no futebol se chama drible. O drible do futebol corresponde ao “faz de conta” da literatura. O jogador faz de conta que vai pela direita, mas é mentira, ele passa pela esquerda. O jogador faz de conta que vai chutar a bola, mas é mentira, ele sai correndo. E assim por diante. E quanto mais mentira melhor.

Mas por que estou falando isso? Porque morreu hoje o maior mentiroso do futebol brasileiro e mundial, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Nenhum jogador contou mentiras mais cabeludas do que ele. Pelé enganou zagueiros e goleiros até sem a bola no pé. Suas mentiras encantaram o mundo e, nós, brasileiros, nos orgulhamos de cada uma delas.

Para terminar essa crônica fúnebre, vou contar uma piada. Uma mulher chega no cartório e diz que quer registrar o filho com o nome de Edson. O escriturário pergunta onde está o filho. A mulher diz que o filho ainda não nasceu. O escriturário manda a mulher embora. A mesma situação se repete várias vezes. Até que o filho nasce. A mulher vai ao cartório e diz que quer registrar o filho com o nome de Pelé. O escriturário pergunta: “Não era Edson?”. Ela responde: “Edson era antes do nascimento.”

Quem inventou essa piada não desconfiava da profecia que estava fazendo: Edson era antes do nascimento. Depois do nascimento, virou Pelé, maior mentiroso do mundo, registrado no cartório do futebol, carimbado com mil gols, para todo sempre.

Não se tratava de um evento para medir filhotes de galinhas. Era pinto mesmo. Daqueles que os humanos do sexo masculino possuem e se orgulham tanto de possuí-los. Principalmente depois que Freud fez dele – o pinto – uma espécie de “eu tenho você não tem”. Era a versão Rambo do Concurso de Miss Universo. A disputa se dava através da medição. O candidato colocava o pinto sobre a mesa milimetrada e media o tamanho, depois colocava sobre a balança para medir a massa. O número somado e dividido era a nota.

Durante a medição muitos pintos caíram por terra, sobretudo daqueles que gozavam com o pau dos outros. Políticos, jogadores de futebol, artistas, empresários, fazendeiros, jornalistas, publicitários e toda sorte de supostos pintudos ficaram só na propaganda.

Ganhou um pintudo da alta sociedade. Competidores das classes sociais inferiores reclamaram de propina. O vencedor subiu no pódio e mostrou o pinto para todo mundo. Ele era o cara, o maior pinto do mundo. Claro que na hora do discurso, o Mister Pinto não pediu a paz no mundo. Ele disse… (melhor não dizer o que ele disse)… mas todos aplaudiram e ele ficou de pau duro.

Faz um mês que meu pai está imóvel na cama por ter fraturado a bacia e a costela. Ele não é mais o mesmo. Não me pega no colo e não me levanta acima dos seus 1,90 metros até passar por cima da sua cabeça e me sentar em seus ombros. Parece que ele está da minha altura, pequeno e frágil. Parece que não mereço mais as alturas.

Estou brincando no quintal, eu e meus amigos invisíveis. Minha mãe visível me chama: “Vem cá! Seu pai quer te ver!”. Pergunto onde. “Lá no quarto!”. Sinto um aperto no peito. Parece medo. Digo para minha mãe que não quero ir. “Como não? Seu pai está te esperando, você tem que ir, você precisa ir”. Não vou.

A casa está cheia de gente. O clima é tenso. Subo na cadeira e vejo meu pai dentro de uma caixa de madeira estofada. Todos estão tristes. Inclusive os três pratos de trigo. Meu pai está aqui e também não está mais. — Que aperto é esse que estou sentindo, caro leitor? Parece culpa, falta, abandono! — Minha mãe me diz o que meu pai instruiu meu tio a não me deixar faltar nada. “Então, tio, traz meu pai de volta, que já estou sentindo falta!”.

Não, é mentira!

Meu pai está no escritório desenhando. É uma folha quadriculada enorme. Abro a porta do escritório e ele para de tocar o violino. “Posso ficar com você?”. Meu pai me pergunta se quero desenhar. “Não, pai, eu quero tocar sanfona, mas sanfona é grande e pesada, eu não aguento”. Meu pai segura a sanfona com as duas mãos e faz ela diminuir de tamanho. “Pronto! Agora está menor, pode tocar”. Pergunto se posso tocar sanfona sentada em seu colo. Ele consente. Toco melodia imortal. “É para você, pai”, eu digo.

Não é mentira!

Entro no ônibus mastigando agendas. O tempo está contra, mas o trânsito está a favor. Nem sinto o percurso. Quando levanto para descer do ônibus, encontro um rosto familiar no corredor. Vacilo por alguns segundos. Posso fingir que eu não sou eu. Só que não…

— Oi, tudo bem? — pergunto hesitante ao rapaz.

O rapaz me dá um olhar em branco, busca memórias dentro de si e sorri.

— Você aqui!

Descemos do ônibus.

— Mudou para Pinheiros? — ele pergunta.
— Como sabe que mudei?
— Seu irmão me contou.

Filho da puta! Se tivesse dito apenas o nome do amigo a dor era menor. Por que qualificá-lo de irmão? Uma pilha de agendas cai sobre minha cabeça. Sinto vontade de voltar para o ônibus, para casa, para o tênis sujo que usava na juventude.

Trocamos cartões, mentiras urbanas e nos despedimos para sempre.

— Te ligo.

Tem cara de santo, eu sei! Era mano de Jesus Cristo, tô ligado! Seus seguidores são mais fieis que os seguidores do Felipe Neto, pode crê! Mas adora mijar no rolê dos skatistas. Já faz uma semana que está mijando sem parar. Issae não é normal. É incontinência urinária. É falta de frauda geriátrica. É falta de penico debaixo da cama.

O que sobra para um skatista fazer quando está chovendo? Treinar olie no tapetinho? Treinar manual com shape velho na garrafa pet? Andar de fingerboard? Jogar videogame do Tony Hawk?

Quero denunciar esse santo por mau comportamento. Chega de mijar no rolê! O skatista limpa os rolamentos, troca a lixa e vai dormir com o céu estrelado. Quando acorda a rua está mais alagada que o banheiro do Rock in Rio. Népussiver! Será que o céu fica tão longe do chão que não dá para ver que a rodinha do skate escorrega na pista molhada?

Esse descaso não pode continuar! Se esse senhor insistir em floodar a rua com a água do seu joelho, vamos floodar o perfil dele com tutoriais de kick flip e fotos da Raissa Leal nas olimpíadas. Todos contra as atividades urinárias de São Pedro. Tmj! Bora lá!

Caminhávamos em prosa e verso por uma longa avenida.

— Para onde estamos indo?
— Para o ponto — respondi.
— Para quê?
— Para pegar o ônibus.
— Para que?
— Para voltarmos para casa.
— Este é o ponto!
— Que ponto?
— Se não houvesse casa para voltar? — ele perguntou.
— Como assim!?
— Nós ficamos na rua durante horas, às vezes dias, quando viajamos, meses, mas sabemos que estamos fora de casa, que estamos caminhando e que podemos parar de caminhar e voltar para casa. E se fosse diferente?
— Diferente como? — perguntei.

Meu amigo nadou até o meio da rua. Seus olhos brilhavam de angústia. Ele respirou fundo para poder parir aquele pensamento insano. Sentei na sarjeta. Eu era apenas parte da circunstância dele. Ele estava conversando com a rua infinita, a rua somatória, a rua atrás da fogueira de platão, a rua na cabeça de deus.

— E se a rua fosse a casa?

Mesmo um paraquedista em queda está voltando para casa. A queda livre é a rua que o leva de volta ao chão. Meu amigo havia acabado de tirar o chão do paraquedista. E se não houvesse lugar para voltar? Se a rua fosse a casa? Se a queda fosse o chão? Se não houvesse lugar para cair senão em si?

How does it fell? Calafrio! Continuei andando. Eu precisava sentir a força da gravidade. Era muita liberdade ser morador de rua.

Murphy me pegou pelo pé, quebrou a corda do violão, fez minha namorada viajar, sumiu com meu dinheiro
e cortou a eletricidade. Meu domingo caiu com a manteiga virada para baixo. Pulei de Murphy para Paulo Coelho e assumi que tudo estava acontecendo por um motivo maior.

Impossibilitado de olhar pela janela eletrônica, fui olhar pela janela de cimento. A noite estava de pijama. A luz dos apartamentos acesos, contrastando com os apagados, criavam uma novela binária. Sentado na plateia escura, fiquei imaginando que atrás de cada pedaço de breu, existiam olhos acesos
como os meus.

No dia seguinte, troquei a corda do violão, minha namorada voltou e encontrei o dinheiro na gaveta das cuecas. Talvez tenha mesmo um motivo maior.

Você recebe muitos convites, mas não se iluda, você jamais foi, é ou será convidado para um churrasco. Quando lhe dizem gentilmente “Vai ter um churrasco em casa, aparece lá!”, você não está sendo convidado para participar e sim para animar a festa. Você é a banda do Zé Pretinho. “Aparece lá!” não é convite, é jeitinho brasileiro de contratar sem cachê.

Até aí nenhuma novidade. Você sabe disso. Não é um fato que você gosta de admitir, mas você sabe que é assim. O problema é que mesmo sabendo, você vai.

E por que você vai? Simples. Vou te contar. Você vai empurrado pela vista grossa, pelo sentimento gregário, pela esperança, e pela maldição que Milton Nascimento e Fernando Brant lançaram sobre sua profissão: “Todo artista tem que ir aonde o povo está!”.

“Que bom que você veio!”, diz o dono do churrasco quando você chega. E você se sente especial, querido, reconhecido, aplaudido. “Me dá um minutinho que já volto”, diz seu anfitrião entrando para dentro da casa. Você acha que o cara vai pegar uma cadeira, uma cerveja e um prato para você se servir. Nada disso. Seu contratante disfarçado de anfitrião volta com um violão.

Você é músico, não é vidente, mas basta relar no braço do violão que adquire o poder de prever o futuro. Você vê tudo que irá lhe acontecer desde aquele instante até a célebre frase: “Toca Raul!”.

O dono do churrasco empilha alguns engradados de cerveja para você se sentar, pois acabaram as cadeiras. O povo abre um círculo na sua frente. O palco está montado. Casa cheia. A expectativa pela primeira música se mistura com o cheiro de vinagrete.

Alguém pede para você tocar uma música que você não sabe tocar. Você faz um dedilhado, confere a afinação e toca outra do mesmo estilo. Agrada do mesmo jeito. O povo se anima e começa a cantar junto. Você está em plena realização do ofício e da maldição.

“Onde fica o banheiro?”, você pergunta. Você quer mijar. Não porque bebeu muita cerveja, mas porque está tocando a mais de uma hora sentado em cima do engradado. Enquanto a cerveja alegrou o povo, apenas quadriculou sua bunda.

Na volta do banheiro você consegue fazer um prato com churrasco e maionese. Consegue pegar um copo de cerveja também. Sua esperança é comer e beber entre uma música e outra. Só que não tem intervalo entre uma música e outra, assim como não tem intervalo entre a nota mi e a nota fá. A esperança que espere. Afinal, é para isso que ela serve.

Cinco horas se passam e você já tocou de tudo, até parabéns pra você. A cerveja já acabou, a caipirinha já acabou, a carne já acabou, mas o domingo só acaba quando a televisão tocar a música do fantástico. Você ameaça ir embora e escuta a célebre frase: “Toca Raul!”.

Que alegria! “Toca Raul” é sua carta de alforria. Fim da festa. Mesmo que você tiver que tocar oito vezes Metamorfose Ambulante, dali não passa. São 5 fases. Todo músico conhece. Fase 1: Tocumaê! Fase 2: Tocaquela! Fase 3: Toca Roberto Carlos! Fase 4: Toca Raul! Fase 5: ressaca.

Você toca Raul e entrega o violão para um cara que aprendeu aqueles quatro acordes que dá para tocar qualquer coisa. Finalmente suas mãos voltam a ser suas. Você pega o prato com churrasco e o copo de cerveja. A cerveja está quente e o churrasco está frio.

Você volta para casa. Liga a televisão. Escuta a música do fantástico. Desliga a televisão. Dorme. No dia seguinte, acorda e percebe o lado bom da coisa ruim: você pulou a fase 5.

Meu nome é Carlos Eduardo. Tenho 46 anos e moro em Florianópolis. Sou formado em engenharia civil e tenho 8 filhos. Meus filhos se chamam: Carlos Júnior, Carlos Neto, Carlos Henrique, Carlos Manoel, Carlos Joaquim, Carlos Ângelo, Carlos Roberto e Roberto Carlos.

Não, é mentira!

Meu nome é Magáli, com acento agudo no “a”. Sou médica e instrutora de mindfulness. Ajudo as pessoas que sofrem de transtorno de ansiedade e estresse a desacelerarem suas mentes e encontrarem equilíbrio emocional.

Não, é mentira!

Meu nome é Sócrates. Sou escritor, historiador, palestrante, doutor em psicologia e terapeuta Junguiano. Também sou estudioso de cultura pop. Tenho um sapato vermelho com sola branca. Eu mesmo que mandei fazer.

Não, é mentira!

Meu nome é Oppenheimer. Sou físico americano, conhecido como o pai da bomba atômica. Estudei em Harvard, onde concluiu um bacharelado em química em 1925. Posteriormente estudei física na Universidade de Cambridge e na Universidade de Göttingen, onde obtive doutorado sob a orientação de Max Born.

Não, é mentira!

Meu nome é Norma Jeane Mortenson, mais conhecida como Marilyn Monroe. Sou atriz, modelo e cantora. Sou um dos maiores símbolos sexuais do século XX, imortalizada pelos meus cabelos loiros e formas voluptuosas. Passei a maior parte da minha infância em lares adotivos e em um orfanato. Me casei pela primeira vez com dezesseis anos.

Não, é mentira!

Eu sou o que vocês, terráqueos, chamam de “extraterrestre”. Não venho de planeta nenhum, existo em outra realidade. Não tenho cabelo, orelhas, nariz, boca, nem pernas e braços. Não tenho corpo. Sou tipo uma nuvem de eletricidade. Mas não dou choque.

Não, é mentira!

Meu nome é Adolf Hitler. Nasci na Áustria e me mudei para Alemanha em 1913. Perpetuei um dos maiores genocídios da história da humanidade, matando pelo menos 6 milhões de pessoas que considerei Untermenschen (sub-humanos) e socialmente indesejáveis.

Não, é mentira!

Meu nome é Cinderela. Sou uma menina órfã de pai e mãe que vive sob a guarda de uma madrasta cruel.

Não, é mentira!

Eu sou você me imaginando.

Não é mentira!

É porque te colocaram na última carteira e te amarraram junto com os cachorros. É porque Clementina amava Oswaldinho. É por causa da teta seca e da fralda molhada. É porque Adão e Eva comeram a maçã. É porque você tem o pinto pequeno. É porque seu pai saiu para comprar cigarros e não voltou. É por causa do violão voando pela janela. É porque a música do Geraldo Vandré perdeu para música do Chico Buarque. É porque você apanhou de cinta vermelha. É por causa do pão com língua. É porque você carrega um buraco entre as pernas e um alvo nas costas. É por ter ficado preso no porta retratos. É por ter perdido a virgindade com um sapo. É porque foi obrigado a decorar a fórmula de bhaskara e a tabela periódica. É porque o papai noel passou o natal rindo como uma hiena e andando de quatro como uma rena. É porque sua fé morreu. É porque você é pobre, preto e gay. É por tudo que não quer calar e está congelado abaixo da linha do mar. Mas não é por política. Não minta para si dizendo que é por política. Nunca foi! Nunca será!

Beethoven entrega as partituras da nona sinfonia ao produtor da gravadora.

— Fala sério, Beethoven, precisa disso tudo?
— Claro que precisa! É uma obra de arte.
— E aquele dinheiro que te prometi? Está precisando daquele dinheiro também?
— Sim, muito!
— Então melhor a gente diminuir essa banda.
— Não é uma banda, é uma orquestra!
— Tanto faz. Vamos diminuir isso! Vamos fazer uns cortes!
— Nem fodendo.
— E se aquele dinheiro não vier?
— Dai fodeu!
— Ótimo! Então vamos aos cortes.
— Quais instrumentos você propõe tirar?
— Deixa eu ver! Esse aqui tira, esse também, esses dois não precisa, tira esse aqui, tira esse também, mais esses três instrumentos aqui, esse também. Pronto!
— Só ficou a partitura da percussão!!!
— Isso! Que mais precisa? Um batidão forte e vamo que vamo!
— E a melodia? Como vai ter música sem melodia?
— E o dinheiro? Como vai ter dinheiro sem música?
— Mas são quatro movimentos: prestíssimo, presto, allegro e largo.
— Pô, Beethoven, aí é você que está economizando. Só quatro?!
— Sinfonia só tem quatro movimentos.
— Coisa mais careta! Pode colocar mais movimento ai!
— O que você sugere?
— Mão no joelho, mão na cabeça, mão no bumbum, agacha, levanta, requebra, faz o quadradinho. E por ai vai… Quanto mais movimento melhor.
— Que tal se eu colocar meu dedo anular no seu cu? Que tal esse movimento?
— Que tal se eu colocar seu dinheiro na minha conta bancária?
— Tempos difíceis esses, einh?
— Sim! E por falar em tempo, quanto tempo dura essa sinfonia?
— No total, quase uma hora.
— Tem que diminuir isso.
— Não mesmo!
— Ou você diminui a música, ou diminuo seu pagamento.
— Trinta minutos.
— Um pouquinho menos.
— Quinze minutos.
— Diminui mais um pouquinho.
— Puf! Cinco!
— Três minutos e não se fala mais nisso.
— E como eu faço para encaixar essa letra toda em uma música de três minutos.
— Ah! Isso é fácil, consoante não tem som de nada.
— Sim, e daí?
— Corta todas as consoantes da letra e deixa só as vogais.
— Vai ficar um monte de vogal igual!
— Daí você corta as repetidas.
— Vai ficar: a, e, i, o, u.
— Sensacional. Isso mesmo! Batidão… aê aê… Mais batidão… iô iô… E pra terminar: uuuu!
— É isso que vai ser a nona sinfonia de Beethoven?
— Pera! Sinfonia não! Sinfonia espanta a galera! Vamos chamar de funk que é mais curtição.
— A música vai se chamar Nono Funk de Beethoven?
— Pera! Não leva a mal, mas Beethoven dá ruim. Parece nome de eletrodoméstico da Brastemp. Geladeira Beethoven Frost Free, tão silenciosa que você vai achar que ficou surdo. Beethoven não dá não. Precisamos usar um nome artístico.
— Imagino que também tenha uma sugestão de nome artístico.
— Tenho sim.
— Pode dizer.
— Sugiro trocar “maestro” por “MC” e “Beethoven” por “Betão”.
— Nono Funk do MC Betão!
— E ai, que tal?
— Ficou uma merda!
— Que nada! Vai bombar no youtube!
— E daí?
— Você vai ficar rico, Betão!

Eu sou a galinha! Aquela! Vim botar ordem no galinheiro! Vim acabar com a polêmica! Quem nasceu primeiro? Eu, claro! Antes deu botar tudo em pé, nem antes tinha. Outra coisa! Não abandonei ninguém. Se quer abandono, abandonem essa ideia. O universo é ioiovo. Eu boto
aparece, eu desboto, desaparece. Eternamente no mesmo lugar. Big-bem-bang. Dito isto, fui! Voltei!
Fui! Voltei! Fui! Voltei! Fui! Voltei! Entenderam?

Eramos a rotina do cartório. Eramos o lado de dentro:

— Documento!
Pá-pum-próximo!
— Documento!
Pá-pum-próximo!
— Documento!

Haviam exceções, estrangeiros, pessoas que enxergavam alguma novidade invisível na repetição. Pessoas sorridentes, perfumadas, fora da fila.

Enquanto os estrangeiros assinavam a certidão de matrimônio, o escriturário coçava o saco
e olhava o relógio. Para os estrangeiros, aquele era “o dia”. Para o escriturário, era um dia. Mais um que ele se empenhava arduamente em transformar em menos um.

O acordo tácito é colocar um ou dois. Quando ambos colocam quantidades iguais, sendo que 1+1=2 e 2+2=4, dá par. Quando colocam quantidades diferentes, sendo que 1+2=3 e 2+1=3, pois a ordem dos fatores não altera o produto, dá ímpar.

Simples! Zero bronca! Mas entre aqueles dois não havia acordo. Eram dois mãos de vacas tirando par ou ímpar e decididos a economizar até os dedos. Ambos colocaram a mão fechada. Resultado, deu zero. E foi assim que tudo começou.

— Zero é par!
— Zero é neutro!
— Deixa de ser burro, zero é par!
— Burro é você, zero é zero!
— Pergunta para o fulano, ele sabe.
— Fulano, zero é par ou ímpar?
— Não sei! Tira de novo!
— Nem fodendo, zero é par, eu ganhei!

A discussão docente visava colocar a bola em movimento, mas só estava servindo para mantê-la parada. Para tirar o jogo da inércia, alguém pegou um celular e foi pesquisar no Google.

— Zero é par! — disse o pesquisador.

Está surpreso, caro leitor? Perplexo? Não sabia que zero é par? Nem eu! Mas foi assim, por deliberação do Google, que zero ficou par e finalmente o jogo começou.

Pedi para tirar as botas ortopédicas. Queria brincar na terra. Foi nesse momento que minha mãe resolveu me dar um presente que mudaria minha vida. Um tijolo. Tinha mais ou menos uns vinte centímetros de comprimento, dez de largura, pesava em torno de oitocentos gramas e no meio estava escrito em alto-relevo: “Bom menino não se suja na terra”.

Peguei o bloco retangular sem saber o que fazer com ele. O peso da frase não me agradava, mas era um presente. Minha mãe, percebendo minha falta de prática com o tijolo, rapidamente explicou: “Meu filho, tijolos são pesos feitos para nós, pedreiros, carregarmos nas costas”. Em seguida, com muita paciência e cuidado ela me ajudou a colocá-lo sobre meu ombro direito. Para contrabalançar, ela colocou outro tijolo no meu ombro esquerdo. Nesse estava escrito: “Equilibre os tijolos com cuidado e nunca deixe-os cair”.

Mal sabia eu que outros tijolos ainda estavam por vir. Durante a juventude, ganhei centenas deles. Não vinham apenas de meus pais, mas de toda a sociedade pedreira. Alguns eram contraditórios. No colégio, por exemplo, recebia tijolos dos professores que diziam “Quem é esperto estuda e faz lição”, mas na hora do recreio, recebia dos colegas tijolos que diziam “CDF é bunda mole, esperto é quem cola”. Era difícil para mim equilibrar os tijolos conflitantes, mas como não podia deixá-los cair, sempre dava um jeito.

Lembro de uma época, no meio da adolescência, em que me revoltei. Senti uma necessidade profunda de me livrar daquele desconforto. Um pedreiro amigo me aconselhou a usar drogas. As químicas não tiravam os tijolos das costas, mas anestesiavam meus ombros eliminando assim a sensação de desconforto. Pena que quando o efeito químico acabava, o peso voltava. Por fim, aquilo que servia como alívio, acabou virando mais um tijolo para carregar.

Me tornei um pedreiro famoso na idade adulta. Ganhei muito dinheiro, dei palestras sobre construção civil, comprei carros, casas, tive filhos e muitas esposas, mas tudo parecia ter o mesmo efeito das drogas, entorpeciam durante algum tempo e depois viravam tijolos também. Em pouco tempo o peso dos tijolos era tanto que minha vida se resumia em alternar sofrimento, raiva e doença.

Cheguei ao fundo do poço num domingo. Já que nada material dava conta de eliminar minha dor, fui até a igreja mais próxima pedir misericórdia. Entrei no confessionário e saí com um tijolo que dizia: “Você é pecador”. Não foi difícil sentir o peso dessa culpa também. Caminhei mais um pouco e caí aqui neste caixão. Agora não sinto mais o peso dos tijolos. Nem sinto o peso de mim mesmo. Estou inerte e com os lábios cerrados. Contudo, ainda tenho força suficiente para lhe entregar este tijolo. Você pode aceitá-lo ou pode ir brincar na terra.

Eu, finalmente, vou brincar.

Vou te contar como aconteceu. Você deixou de ler os quadrinhos e começou a ler os editoriais. Trocou a disputa do cabelo mais comprido pelo cargo mais alto. Fez pano de prato com a camiseta do Led Zeppelin e começou a dormir de pijama. Passou a repetir para seus filhos as mesmas frases feitas que odiava ouvir dos seus pais. Parou de acreditar em visão de raio-x e passou a crer na previsão do tempo. Trocou o improviso pelos fundos de renda fixa. Trocou os óculos escuros pelo colírio. Trocou as gírias pelos jargões de direito penal. Trocou os manos pelo money. Trocou a sinceridade pelo uísque. Passou a cultuar a estrutura do átomo, livros de capas duras e revistas de mulheres peladas. Acertei? Sua penitência é rezar cinco paçoquinhas.

Todo racha tem um Rogério, um cara que é um algodão-doce, um ursinho de pelúcia, um diplomata da ONU quando está fora de campo, mas que vira o capeta quando entra. Sabe aquele desenho do Pateta motorista, estilo O Médico E O Monstro, em que o Pateta é um cidadão exemplar até que entra no carro e se transforma no Demônio da Tasmânia? Assim, é um Rogério.

Tinha um Rogério no meu racha, mas tão Rogério, tão Rogério, que nem ele suportou ser tão Rogério e saiu do racha. Parou de jogar futebol. E prometeu que só voltaria a jogar quando estivesse curado. Para se curar, comprou uma bicicleta e virou ciclista. Rogério já pedalou o suficiente para dar três voltas ao redor do mundo e ainda não voltou para o racha.

Ele me disse que não voltará mais. Dependurou o Hulk e as chuteiras. Rogério não existe mais como jogador. Mas ficou o mito, a fama e o adjetivo. Por exemplo, “Você está muito Rogério hoje”, significa que o jogador está gritando muito. “Menos Rogério!”, significa que o jogador deve diminuir o número de reclamações.

Outro dia, tive um atrito em campo com um amigo. Chamei o amigo para conversar no whatsapp. Conversa vai, conversa vem, disse para ele: “Você está pior que o Rogério”. Meu amigo encerrou a conversa furioso e me bloqueou.

Me xinga de fdp, mas não me xinga de Rogério.

Pitoco era um cachorro salsicha. Cachorros salsichas são fáceis de tratar e excelentes sirenes de polícia. Minha avó tinha um bando deles. Morriam uns, nasciam outros. Ela sempre tinha uns quatro pela casa. O método de preservação da raça era a pouca-vergonha. O filho transava com a própria mãe e assim por diante. Enfim, mundo cão.

Pitoco era um dos oito filhotes da última ninhada. Ele era o único que ainda morava com os pais. Tinha dois irmãos que moravam perto, com a tia, no sítio vizinho, do outro lado do pasto.

Não sei por que a rixa. Talvez porque Pitoco tenha mamado no peito enquanto seus irmãos tiveram que se contentar com ração de fubá. Ou então, a tia tinha algum desafeto com a irmã. Seja o que for, o fato é que toda vez que Pitoco resolvia atravessar o pasto e visitar os irmãos, era atacado pela tia e pelos ex-companheiros de útero.

Uma vez, durante uma visita, Pitoco foi caminhando com quatro patas e voltou com três. Uma delas foi mastigada pela tia. O reverso também já havia acontecido. Os dois irmãos atravessaram o terreiro e foram escorraçados pelos tios.

Essa introdução é para explicar por que não deixei Pitoco me seguir até o canavial.

Estava descendo o pasto e Pitoco trombou no meu calcanhar. Virei para olhar e ele balançou as orelhas. Ameacei chutar sua bunda. Não funcionou. Tentei espantá-lo com um berro. Também não adiantou. Pitoco ia e voltava feito dor de cabeça.

Então, quebrei um galho de árvore e sapequei seu coro. Pitoco correu um pouco e me olhou triste, sem compreender porque estava sendo chicoteado. Dei a segunda lambada. Depois a terceira, até que ele desistiu de me seguir e voltou para casa.

Ao chegar no canavial, confirmei que a tia de Pitoco estava lá, como de costume. Se Pitoco tivesse me seguido, a surra seria feia e certa. Não sei se cachorro fica magoado e consegue perdoar as pessoas, mas não contei essa história para cachorro ler.

Há muito tempo, no Planeta Dono, havia uma civilização que vivia em busca da propriedade. Ninguém jamais havia visto ou encontrado a tal propriedade, mas todos a buscavam freneticamente. Haviam também lendas, livros, histórias e músicas sobre a propriedade. 

Nada era mais real e importante do que ser dono, então, todas as manhãs, todos os habitantes vestiam roupas de corrida, tênis e percorriam o planeta em busca de propriedades. Nunca encontravam. Voltavam exaustos e frustrados para suas casas. Mas não desistiam.

Falsos encontros aconteciam. Alguns habitantes acreditavam serem donos de esposas, de maridos, de filhos, de fortunas, de cidades, de países, de sociedades, etc. Mas fosse o que fosse, a propriedade sempre sumia do dia para noite. Após cada desaparecimento, eles se perguntavam: “Quem mexeu na minha propriedade?”. Haviam respostas cientificas, filosóficas, antropológicas, místicas, mas nenhuma resolvia.

Na ânsia desesperada de possuírem alguma coisa, os habitantes do Planeta Dono passaram a colidir uns com os outros. Para evitar as trombadas, decidiram se dividir em buscadores de direita e buscadores de esquerda, regidos por leis de trânsito e sob pena de morte.

Foi nessa época, que a civilização do planeta Yellow Submarine veio conversar com os habitantes do Planeta Dono e explicou para eles que propriedade era crença, que só existia dentro da cabeça deles. A princípio, todos repudiaram a explicação, mas como só conseguiam fracassar na busca, aos poucos foram desistindo de acreditar em propriedade. 

E foi assim que o Planeta Dono se transformou no Planeta Imagine. 

As vezes vou até a cozinha, coloco um fio de água na frigideira e acendo o fogo. Faço isso para assistir de camarote o líquido se transformando em vapor. Aguardo com paciência a aparição das microbolhas e recordo as palavras ígneas da professora de ginásio: “Água vira vapor quando chega no ponto de ebulição”. Hoje sei que pessoas também entram em ebulição. Chamo esse momento de Ponto de Ícaro. Escolhi esse nome porque Ícaro teve de criar asas para escapar do labirinto.

O Ponto de Ícaro não tarda e nem falha. Só que marcha com botas de lã. Quando menos percebemos, já é, já Ícaro. Recentemente vi um Ponto de Ícaro no documentário Dogtown and the Z-boys. Vou contar um pouco do que aconteceu antes de chegar no ponto.

Antes dos Z-boys, surfistas que viraram skatistas, a maioria dos skatistas andavam de skate numa mistura de brincadeirinha de circo com saltos de atletismo. Foi quando Jay Adams entrou na cena. O Ícaro do skate foi participar de um campeonato tradicional e fez manobras que deixou o público e os juízes sem entender nada. Jay era mais do que um participante, era uma nova forma de vida sobre rodas, uma nova forma de ser a mesma coisa, um novo skatista. Os juízes, espantados, não sabiam sequer como julgá-lo. Os outros competidores ficaram putos, mas a platéia ficou extasiada.

Naquele verão, Dogtown passou por uma forte estiagem e todos os cidadãos foram obrigados a esvaziarem suas piscinas. A serpente da gênese foi chamada. Sua missão foi convencer os Z-boys a invadirem os quintais e fazê-los enxergar ondas nas superfícies curvas das piscinas. Nasceu assim o skate vertical. E quando todos já estavam deslizando pelas paredes côncavas, Jay Adams recebeu um impulso de Ícaro e começou a subir… subir… subir… Só que a parede da piscina acabou e Jay continuou subindo… subindo… subindo…

Talvez seja por isso que Jay Adams acabou se envolvendo com drogas em vez de se envolver com a mídia. Talvez o que Jay tenha visto naquele vôo vertical seja perturbador demais para fazê-lo voltar a morar numa vida horizontal. Talvez seja esse o êxtase que esteja por trás do visceral mantra “skate or die”. Talvez seja por isso que sentimos dor nas costas e no peito. Asas atrofiadas querem crescer e o coração quer sair do labirinto.

A gente não se lembra que foi até a rodoviária, escolheu o destino, comprou a passagem e entrou no ônibus. A gente não lembra de nada disso. Quando a gente se dá conta da gente, a gente já é gente, mais um na contagem regressiva do tempo. O ônibus balança, nós dá um tapa na bunda e acordamos na poltrona. Quemqueusô? Ondeutô? Dondeuvim? Prondieuvô? Nos perguntamos. O silêncio responde. O silêncio é a resposta constante que está sempre antes e depois da pergunta. Mas silêncio é eterno e não na fala língua da gente, então, vamos de poltrona em poltrona perguntando a tudo que é passageiro: “Porque a gente é assim?”.

Uns dizem que é preciso dividir o ônibus em poltronas impares e pares e guerrear contra o lado oposto. Outros dizem que é preciso jogar fora o serviço de bordo, jejuar e fazer penitencia. Outros dizem que é preciso rezar para o motorista. Outros sequer respondem, estão ocupados demais bebendo pinga, jogando baralho, assistindo seriado na tv a cabo, fazendo leis e jogando banco imobiliário.

E o ônibus continua balançando. Só que agora não é mais tapa na bunda, é soco no estomago, mawashi, jab e martelada na cabeça. A viagem se transforma em um treinamento da tropa de elite. “Pede pra sair! Pede pra sair! Pede pra sair!”. É nesse ponto que a gente se arrepende de ser gente. Porém, estranhamente, a gente não desiste da gente. Mesmo sem saber o que é ser gente, a gente continua sendo. É nesse ponto que a gente finalmente entende que a gente é a resposta.

Deus sentiu desejo, feito mulher grávida. Só que naquela época ainda não existia desejo. Então, Deus sentiu um treco, um troço, um deusconforto, tipo coceira no nariz. A coceira foi aumentando e foi dando uma vontade de mexer. Como Deus era tudo e não tinha para onde ir, o jeito foi Deus se remexer. Até que Deus entendeus! Era vontade de comer goiaba. Mas onde comprá-las se ainda não existia feira, supermercado e sacolão? Foi então que Deus decidiu criar o mundo.

Primeiro Deus criou o chão para ter onde plantar as sementes de goiaba. Depois criou um reservatório de água e chamou de oceano. Depois criou o sol para fazer a água do oceano evaporar e virar chuva, ou seja, criou o primeiro sistema de irrigação. Foram sete dias de plantio. Além de semente de goiaba, Deus plantou um monte de ideias que teve durante a semana.

Passado um tempo, as goiabeiras já crescidas, ficaram carregadas. Quando a primeira goiaba madurou, Deus foi pegá-la no pé. Foi aí que Deus percebeu que estava faltando alguma coisa. Para saciar seu desejo de comer goiaba, Deus precisava ter boca, dente, língua e paladar. Coisa que ele não tinha.

Então, Deus criou o homem.

Prever o futuro não é questão de cartomancia, é questão de imaginação. É na imaginação que a coisa acontece antes de acontecer. Então, quando ele me fez a pergunta, eu vi o futuro. Era assim:

Eu diria a verdade. Ele ficaria irritado. A irritação se transformaria em raiva. A raiva se transformaria em vontade de matar o criador do incômodo, eu. Matar ele não podia. Era muito drástico e daria cadeia. Então, ele pensaria numa estratégia invisível e socialmente aceitável de vingança. A solução seria me proibir de usar a coisa.

Eu diria isso a ela. Ela me perguntaria como ele ficou sabendo. Eu diria a verdade. Ela ficaria irritada. A irritação se transformaria em raiva. A raiva se transformaria em vontade de matar o criador do incômodo, eu. Matar ela não podia. Era muito drástico e daria cadeia. Então, ela pensaria numa estratégia invisível e socialmente aceitável de vingança. A solução seria tortura psicológica, que me levaria a loucura, mas evitaria o óbito.

Mentir era tão fácil. Bastava uma mentirinha e pronto, deceparia numa só enxadada todos os infortúnios que estavam claramente visíveis na bola de cristal. E haviam várias mentiras ótimas na minha cabeça. Todas coerentes. Até irrefutáveis. Bastava escolher uma. Por que não?

Disse a verdade. Ele ficou irritado. A irritação se transformou em raiva. A raiva se transformou em vontade de matar o criador do incômodo, eu. Matar ele não podia. Era muito drástico e daria em cadeia. Então, ele pensou numa estratégia invisível e socialmente aceitável de vingança. A solução foi me proibir de usar a coisa.

Eu disse isso a ela. Ela me perguntou como ele ficou sabendo. Eu disse a verdade. Ela ficou irritada. A irritação se transformou em raiva. A raiva se transformou em vontade de matar o criador do incômodo, eu. Matar ela não podia. Era muito drástico e daria em cadeia. Então, ela pensou numa estratégia invisível e socialmente aceitável de vingança. A solução foi tortura psicológica, que me levou a loucura, mas evitou o óbito.

Previsto e posfeito.

A expectativa do pai é que a criança fale “papai”. A expectativa da mãe é que a criança fale “mamãe”. Eu não tinha esse tipo de expectativa, estava curioso para ver qual seria a primeira palavra que ela iria articular, fosse qual fosse. Mas não bastava dizer, ela teria que repetir, várias vezes, pois isso seria um sinal de aprendizagem adquirida.

Não lembro quanto tempo demorou para acontecer, mas lembro onde foi e como foi. Estávamos sentados ao redor da mesa da cozinha numa tarde de domingo, quando ela começou a balbuciar uma frase e balançar as mãos. Não dei muita atenção até que ela repetiu a mesma frase. Olhei para ela e fiz careta. Ela repetiu mais uma vez. Depois de novo. E de novo.

A mãe e a avó, que estavam comigo nesse momento divisor de águas, não entenderam a frase, então, expliquei. Ela disse: “carro tem teta”.

Ambas deram uma risadinha de “que engraçadinho você” e rapidamente desconsideram que aquela imagem surreal havia sido a primeira palavra pronunciada pela menina. Talvez elas estivessem esperando algo mais adulto como “carro tem pneu”. Mas a criança venceu e o carro ganhou tetas.

Durante algum tempo, eu e ela tivemos longas conversas através da sua primeira frase. Eu dizia “carro tem teta” e ela respondia “carro tem teta”, tanto para concordar como para discordar de mim.

Hoje em dia, no auge dos seus 13 anos, quando conto essa história ao redor da mesma mesa da cozinha, ela dá a mesma risadinha de “que engraçadinho você” e também desconsidera que essa foi sua primeira obra prima verbal.

Crescemos. Ficamos adultos. E adulto tem sempre a última palavra.

Olie air é a manobra que divide a história do skate. Antes do olie air os skatistas eram cobras deslizando pelo chão, depois do olie air os skatistas se transformaram em cangurus. Tudo que impedia a passagem passou a ser pulado de olie, calçadas, buracos, muretas, hidrantes, bancos.

Quando era moleque, pular um banco de olie era motivo para virar capa de revista. Só que skatista é zica, mal aprende uma manobra, quer complicar. Como se não bastasse pular tudo de olie, começaram a inventar variações da manobra.

A variação mais famosa do olie air se chama kickflip. Outro dia, resolvi treinar. Depois de uma hora, meu pé já havia memorizado o movimento, e pá: acertei meu primeiro kickflip. Fiquei parado e emocionado em cima do skate. Como pode um ser humano ficar tão feliz apenas por acertar uma manobra de skate? Acerte seu primeiro kickflip que irá entender.

— O próximo, por favor.
— Sou eu.
— Pode entrar, é por aqui.
— Grato.
— Pode se sentar.
— Grato.
— O senhor está procurando emprego?
— Sim, estou.
— O que o senhor sabe fazer?
— Nada.
— Nada!
— Quase nada.
— Ótimo, o que sabe fazer?
— Eu sei amar.
— Amar! Como assim?
— Eu amo as coisas, os bichos, as plantas, as pessoas…
— Meu amigo, você não pode estar falando sério.
— É sério! Eu amo mesmo.
— Só pode ser pegadinha!
— Estou amando você, por exemplo.
— Rá rá rá! Engraçado! Cadê a câmera?
— Com todo o respeito, Doutor …
— Doutor Ataliba.
— Eu só sei amar mesmo.
— Como espera arranjar um emprego assim?
— Ué! O mundo não precisa de amor?
— Amor conserta geladeira?
— Não, Doutor Ataliba.
— Amor faz pão francês?
— Não, Doutor Ataliba.
— Amor enche o tanque do carro?
— Também não, Doutor Ataliba.
— Então, meu amigo!!!
— Me ajuda, Doutor Ataliba, só sei amar.
— Bem, tem uma vaga aqui.
— Ótimo! Ótimo! Ótimo!
— Mas já vou avisando.
— O que foi?
— O funcionário anterior foi crucificado.

Tudo começa quando o despertador toca as 6:27 da manhã.

Crianças acordam, apenas acordam. Adultos não. Adultos controlam o tempo.

Adultos acordam as 6:27. E como se não bastasse, as 6:43, já sabem se vai chover na França, que teve terremoto de escala 3,2 na China, que aumentou o preço da gasolina e o que vai acontecer no próximo capítulo da novela.

Acha pouco! Das 6:43 as 6:57, enquanto você está tentando dar seu primeiro passo e articular seu primeiro gugu-dadá, os adulto já andaram pela casa inteira doze vezes, produziram palavras suficientes para cantar todas as músicas do Roberto Carlos, fritaram ovos, lhe deram mamadeira, vestiram e desvestiram suas roupas três vezes, escovaram os dentes, passaram fio dental, mijaram em pé.

E mais incrível!

Amarram o cadarço do sapato sem precisar fazer orelhinhas de coelho.

E o que você fez? Você babou. E nem foi baba voluntária.

Diante sua total incompetência e vendo os adultos fazerem tudo isso, com tanta certeza, rapidez e precisão, qual é sua conclusão?

Os adultos sabem o que estão fazendo.

É inevitável que você pense assim. Um ser que acorda exatamente as 6:27 da manhã, só pode saber o que está fazendo.

Um ser que usa garfo e faca, que bebe leite no copo, e que sabe a cotação diária do dólar, com certeza absoluta sabe o significado da sua existência.

Este é seu primeiro e recorrente equívoco existencial.

É este equivoco que lhe convence a atravessar toda a tediosa e desagradável burocracia que o leva ao diploma de adulto.

Infinitas horas de caligrafia, tabuada e absorção de conhecimentos que vão muito além de garfo e faca. Tortura primária, média, fundamental, superior e pós-graduada.

É uma missão impossível. Mas se você, por um milagre, consegue chegar vivo ao morro do calvário, daí você tem uma iluminação:

Adultos, eu lhes perdoo, vocês não sabem o que fazem.

Seu equívoco fica evidente quando você se dá conta que é um adulto, registrado, carimbado, avaliado, mas não sabe o que está fazendo.

E se sua iluminação é profunda, se é capaz de transcender tudo que você decorou para passar no vestibular, se é capaz de transcender todo catecismo, se é capaz de transcender toda ciência, se é capaz de transcender até René Descartes, então, você imediatamente entende que ninguém sabe o que está fazendo.

E quando digo ninguém, é ninguém mesmo. Nem o papa, nem o presidente, nem anjos, nem os arcanjos, nem mesmo deus.

Você entende que todos estão apenas fazendo. Até porque, não tem outra coisa para fazer, senão fazer alguma coisa.

A única diferença é que uns estão fazendo o que querem, enquanto outros estão fazendo o que não querem.

Uns estão inventando impossibilidades, enquanto outros estão realizando o impossível.

Uns estão fazendo o que foram ensinados a fazer, enquanto outros estão fazendo o que se ensinaram a fazer.

Uns estão brigando com os outros, se obrigando e obrigando todos serem iguais, outros estão desfrutando uns aos outros, curtindo as diferenças complementares.

Uns são deus acreditando que deus sabe o que está fazendo, outros são deus se deuscobrindo.

Quando não tem ninguém olhando, Jesus, que também é filho de Deus, desce da cruz da basílica de São Bento, atravessa o viaduto Santa Ifigênia e vai tomar cerveja no bar do Bigode, enquanto joga sinuca. Ele bebe cerveja Brahma em copo americano, fuma cigarros Hollywood e conversa sobre as amenidades.

Jesus é bom de papo. Conta sempre a mesma piada. Um homem vai à missa, come um pedaço de botina acreditando ser uma hóstia, e, quando descobre que a hóstia é o corpo de Cristo, acha que engoliu o cu. Ninguém ri. Ele não se importa. Jesus ri de si mesmo. Bebe a saideira comendo um enroladinho de salsicha.

Antes de voltar para cruz, ele vai até um puteiro no Largo do Paiçandu para se encontrar com Madalena. Ela nunca está lá. Isso que é sofrência, mais de dois mil anos de coração partido! Jesus se deita com uma das moças disponíveis. Depois volta para basílica alimentando os pombos do Vale do Anhangabaú com pedaços de pão.

Jesus se ajoelha nos degraus do altar da basílica e reza um pai nosso em frente a cruz vazia. Quando o primeiro fiel entra na igreja, Jesus já está pregado na cruz, como é de se esperar.

“O amor começa quando aprendemos a ouvir o outro”, ela disse. Virei as costas e saí da frase. Só que a frase não saiu de mim. Grudou. Virou um trava língua dentro da minha cabeça. “O amor começa quando aprendemos a ouvir o outro começa quando o amor aprendemos a ouvir o amor quando começa outro aprendemos o amor quando começa outro ouvir ouvir ouvir ouvir…”

Cheguei em casa com a réplica pronta. “Sabe o que você falou sobre ouvir o outro? Pois então… pápápá, pípípí, pópópó…” O ensaio estava ótimo. Disquei o numero dela. Uma secretária eletrônica atendeu com voz de homem: “Você ligou para pápápá, pípípí, pópópó…”. Desliguei.

Voz de homem não! Foi engano. Redisquei. O secretário eletrônico atendeu novamente. Tentei pela terceira vez, prestando bastante atenção nos números. A voz de trovão persistiu. O que fazer? Quando tocou o bip, comecei: “Meu amigo, sei que você não me conhece, mas pápápá, pípípí, pópópó… E grato por me ouvir”.

A religião fala em sete pecados capitais. Espero que esquecimento não seja um deles, pois me esqueci quais são. Mas lembro da professora de catecismo dizendo que o egoísmo é o pai de todos. Só que ela não explicou por quê. Tive que descobrir sozinho. O futebol me ajudou nisso.

Egoísmo em um corpo se chama câncer. É quando uma célula quer jogar sozinha e foda-se o resto dos jogadores (células). Dá tilt na célula e ela se esquece (olha o esquecimento aê!) que é parte do corpo. A célula ganha do corpo, mas como ela é o corpo, no final, perde por ter ganhado.

No futebol, o comportamento egoísta se chama “fominha”. Tem jogador que passa pouco a bola. Tem jogador que passa muito pouco. Tem jogador que não passa a bola. E tem o fominha, que não passa a bola neeeem fudeeeeendo.

Creio que o fominha é bem intencionado. De alguma forma, assim como a célula cancerígena, ele acredita que está fazendo o bem. Só que não está. O bem que o fominha faz a si, faz mal ao time e o mal do time retorna ao fominha com a derrota na partida.

Não tem coisa mais irritante do que jogar no time de um fominha. Você não vê a cor da bola. Se o time tiver dois fominhas, esquece (olha o esquecimento aê), só os dois vão jogar. Você pode sair de campo, ir ao supermercado fazer compras e voltar, os fominhas nem vão perceber.

Outro dia, no grupo de whatsapp do racha, um participante postou um áudio reclamando de um fominha. Só que não disse o nome, se referiu ao fominha como “loirinho que não toca a bola”. Pra que? Virou caça ao fominha. Quem é o loirinho? Até ruivos e morenos entraram na lista dos suspeitos. Imagina o tanto de fominha que não tem no racha!

Ah! Quer saber se já fui fominha? Se fui, não lembro.

Na prática, todos fazemos sexo. Na teoria, quem faz sexo para matar a fome de sexo, é praticante, quem faz sexo para a matar fome de arroz, feijão, bife à milanesa ou bolsa da Louis Vuitton, é puta. Por que a diferença teórica se a prática é a mesma?

Há quem diga que é por falta de amor. Se for isso, putas são putas por terem aquela qualidade que tanto idolatramos no mercado de trabalho: profissionalismo. Prostitutas fazem sexo por dinheiro. Tudo ao gosto do cliente: égua, ana, tiazinha, cadela, lolita, roberta. Profissionalismo ISO 9000. O cliente pode ser muçulmano, desdentado, padre, comunista, trissexual, oscambau. Pagou, gozou.

Será que temos consciência do que significa profissionalismo? Acho que só tem um jeito de saber. Quem não é puta levante a mão! Vamos lá! Quem não abre as pernas para o que vem de César? Quem não dança na boquinha da garrafa de Adam Smith? Se alguém aqui tem consciência virgem, fale agora!

Ninguém!? Então, por que não paramos com a hipocrisia e descriminalizamos a putaria? Quem sabe nos tornamos melhores profissionais. Ou então, foda-se o profissionalismo! Pau no cu do dinheiro! Vamos trabalhar só para quem dá tesão de beijar na boca ou carinho de beijar na testa.

Acordei com vontade de beijar um homem. Não saí do armário. É saudades do meu pai. Saudades de brincar de plástico bolha com o lóbulo da sua orelha. Quantas histórias! Vou contar uma que marcou minha alma e seu corpo. Uma que começou com uma carreata de sorveteiros.

Uma loja estava sendo inaugurada perto de casa. Fui participar da distribuição gratuita de sorvetes. Na pressa, me descuidei com o trânsito e acabei tendo o pé atropelado por um fusca. Só que ao invés de passar por cima do meu pé, o fusca parou em cima dele. Depois me puxaram pelo braço até o pé sair debaixo do pneu. Resultado, além do pé quebrado perdi a pele de cima do pé.

Os médicos fizeram enxerto. Funcionou. Só que teve que engessar também. O enxerto precisava de curativo e o osso precisava de imobilização. A solução foi fazer uma janela no gesso para possibilitar a troca do curativo.

Nada doía tanto quanto trocar aquele curativo. Por mais jeitosos que os enfermeiros fossem, por mais pomada que se colocasse no local, a gaze grudava na carne e retirá-la era como arrancar a pele. E pior que uma vez por semana a tortura se repetia para evitar infecção. É aí que meu pai entra nessa história.

Certa vez, durante uma viajem, meu pai me levou à farmácia para trocar o curativo. O farmacêutico tirou a tampa do gesso e meu pé já começou a doer. “Por favor… por favor… por favor… pai… pede para ele parar!”, eu implorei.

Prometi estudar 12 horas por dia. Prometi jogar futebol na terra e voltar com a roupa limpa. Prometi arrumar a cama. Prometi comer só um bis. Não teve acordo.

Claro que nenhum pai gosta de ver o filho sofrendo, mas tem dores que temos que passar para continuarmos vivendo. Além do que, dor muito maior viria se aquele enxerto infeccionasse. Meu pai balançou a cabeça e deu autorização ao farmacêutico para prosseguir com a troca do curativo.

Disse ao meu pai que ele era mal, que era o pior pai do mundo, etc. Meu pai me deixou xingá-lo e reclamar a vontade. Depois esticou o braço e me disse: “O tanto que doer no pé, você morde no meu braço”.

Sim, meu pai foi grande, mas como a dor deixa a gente pequeno e cego, não me convenceu. Quanto mais o farmacêutico puxava o gaze, mais doía, e quanto mais doía, mais eu cravava meus dentes de leite no braço do meu pai. Mordia de raiva e vingança. Mordia de filho pródigo.

Acordei com saudades de beijar e morder esse homem.

Ingrediente:

1 cavalo
1 chapéu
Roupa para andar a cavalo

Preparo:

(1) Suba no cavalo.
(2) Caia do cavalo.

Repita os dois passos até atingir a iluminação.

Ingredientes:

300 gramas de sal grosso
1 saco plástico (dos grandes)
1 caderno
1 lápis
1 cadeira
1 régua de 30 cm
1 giz branco
1 caneca
1 mala sem alça

Preparo:

Durante um mês, toda vez que sentir vontade de reclamar de algo, pegue o lápis e escreva no caderno qual é o certo. Por exemplo: “O certo é ter papel higiênico no banheiro; o certo é não mentir; o certo é amar o próximo; o certo é parar no sinal vermelho; etc”.

No fim do mês, pegue o sal grosso e jogue dentro da mala sem alça.

Acrescente água até o limite.

Tire a roupa do corpo e tome um banho de caneca com a água da mala.

Depois do banho, ainda pelado, pegue a régua, coloque-a sobre o assento da cadeira e trace uma reta com o giz branco.

Sente-se pelado na cadeira colocando o cu na reta.

Pegue o caderno e leia o que escreveu durante o mês.

Enquanto estiver lendo, cada vez que virar uma página do caderno, assopre todo ar que tiver no pulmão dentro do saco plástico.

Quando terminar de ler, levante-se da cadeira, pare de encher o saco e seja a mudança que quer ver no mundo.

Ingredientes:

3 baldes
1 consciência
1 filme água com açúcar
1 livro de história da filosofia

Preparo:

Antes de lavar sua alma verifique os bolsos, para evitar que fique sujeira por dentro.

Separe as camadas de alma por níveis de sujeira. As camadas mais sujas devem ficar de molho.

Esfregue sua alma. Coloque-a sobre a palma da consciência e movimente-a de dentro para fora.

Encha dois baldes com sinceridade. Passe sua alma pelo primeiro balde, para tirar a hipocrisia grossa e pelo segundo, para tirar a hipocrisia fina.

Hora do amaciante. Mergulhe sua alma em um filme água com açúcar. Para que sua alma não fique mole demais, retire o excesso de amaciante na filosofia.

Por fim, pendure sua alma no varal e deixe a má água evaporar.

Se sua alma continuar suja, lave-a do avesso.

Dica (1): Não use alvejante em almas de lã.
Dica (2): Quanto mais tempo adiar a lavagem, pior para sair a sujeira.
Dica (3): Para tirar mancha de rancor, aplique talco de bebê sobre a alma.
Dica (4): Alma suja se lava em casa.

Ingredientes:

1 caixa de amido de milho Mãe Zena
1 saco de pipoca
1 tesoura
1 boneco voodoo do seu chefe
1 despertador quebrado
100 gramas de sal
1 caixa de chocolate do padre
Primeira e segunda temporada da sua série preferida de televisão (lost, friends, os normais, etc)
1 batom vermelho
1 folha de papel sulfite
1 lata de óleo de semente de girassol

Preparo:

Domingo a noite, ao invés de assistir fantástico, assista a primeira temporada da sua série preferida de televisão.

Antes de dormir, pegue a tesoura e corte o fio do telefone.

Ajuste o despertador quebrado para hora de acordar.

Na segunda feira, durma até o despertador tocar. Se o despertador não tocar, durma o tanto que quiser.

Assim que acordar, pegue o amido de milho Mãe Zena, o chocolate do padre, e prepare um mingau. Com uma colher de sopa, despache vagarosamente o mingau goela adentro.

Pegue o batom vermelho, a folha de papel sulfite e vá até o parque mais próximo de sua casa.

Procure um lugar bem ensolarado, coloque a folha de papel sulfite no chão e desenhe a letra “A” na folha usando o batom.

Terminado o desenho, incorpore o Dr Bezerra de Menezes (ou Dr Drauzio Varella). Se ajoelhe e bata três vezes com a testa na letra A.

Almoce num restaurante no caminho de volta.

Chegando em casa, tire um cochilo.

Assim que acordar, pegue o boneco voodoo do seu chefe, o óleo de semente de girassol e a pipoca.

Jogue o óleo e a pipoca numa panela. Ligue o fogo.

Quando o óleo estiver fervendo, pegue o boneco voodoo e convide-o para assistir a segunda temporada da sua série preferida de televisão.

Mexa a cabeça do boneco para frente e para trás usando o dedo e ventriloquamente faça-o dizer: “Claro! Eu adoro (complete com o nome da sua série preferida)!”.

Leve o boneco para o sofá, despeje a pipoca num balde, coloque sal a gosto e passe a tarde assistindo televisão.

Na terça-feira, quando seu chefe vier lhe cobrar a falta da segunda, lhe entregue o “A” testado pelo Dr Bezerra de Menezes.

Ingredientes:

1 dúzia de pilhas recarregáveis descarregadas
1/2 dúzia de recarregadores de pilhas
1 tambor do Olodum
Várias pedras coloridas
2 dúzias de pães
1 lata de tinta branca látex
1 pincel
2 dúzias de salsichas
1 filme dos trapalhões
1 pote de sorvete
5 sacos de Doritos
1 garrafa de groselha
1 roteador de internet quebrado

Preparo:

Chegue em casa antes dos seus familiares.

Troque as pilhas boas dos controles remotos pelas pilhas descarregadas.

Troque o roteador de internet bom pelo roteador quebrado.

Sente-se no sofá da sala.

Quando seus familiares já estiverem cansados de tentarem ligar a televisão ou acessar a internet, chame-os para sala tocando o tambor do Olodum.

Afaste os móveis e desenhe um jogo de amarelinha no chão usando o pincel e a tinta látex branca. Entregue uma pedra colorida para cada um deles e comecem a jogar.

Depois de várias rodadas de amarelinha, esquente as salsichas e faça hot-dogs. Para beber, faça groselha.

Coloque as pilhas descarregadas nos carregadores.

Enquanto as pilhas recarregam, joguem o jogo da verdade, comendo Doritos e tomando sorvete.

Durmam juntos na sala assistindo os trapalhões.

Suas pilhas estarão completamente recarregadas pela manhã.

Ingredientes:

Vergonha (em pó)
2 atitudes (em cápsulas)
1 caneta esferográfica
1 cartela de etiquetas (24 unidades)
1 mundo inteiro
2 dúzias de bonecos voodoo
1 MP3 da música “Manhãs de Setembro” com Vanusa
1 mochila
1 caixa de sapatos cheia de esperanças (insetos verdes)1 estilete
1 espelho

Preparo:

Ainda em jejum, assista o telejornal da manhã. Durante o telejornal, olhe no espelho. Quando terminar o telejornal, passe um pouco de vergonha na cara.

Pegue a caixa de sapatos e despeje todos os insetos verdes (esperanças) dentro da mochila. Aliás, não todos, guarde um dentro do seu bolso.

Faça um rasgo no fundo da mochila com o estilete para que os insetos possam escapar.

Tome uma atitude.

Coloque a mochila nas costas e ande pela cidade.

Perca as esperanças na igreja, na prefeitura, na escola, no cinema, no exército, na farmácia, no comércio, no jornal, na cartomante, no banco, no fórum, enfim, em tudo. Fique apenas com a esperança em você.

Volte para casa.

Com a caneta esferográfica, escreva o nome das pessoas com quem você mais convive nas etiquetas. Por exemplo: Luiz, Maria, Alberto, Gervásio, Solange, Verônica, etc.

Nas últimas sete etiquetas, escreva o nome das sete notas musicais: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si.

Cole as etiquetas nos bonecos voodoo e espalhe-os ao redor do mundo inteiro.

Coloque a música da Vanusa para tocar no ambiente.

Pegue o boneco voodoo que recebeu o nome da nota musical “si”.

Tome outra atitude.

Coloque “si” no lugar dos outros. Por exemplo, coloque “si” no lugar de Luiz, coloque “si” no lugar de Maria, coloque “si” no lugar de Gervásio, coloque “si” no lugar de Solange.

Por fim, coloque “si” no lugar do mundo inteiro.

Repita tudo até os resultados passarem no telejornal.

Ingredientes:

1 uma caneta
1
marreta

Preparo:

Escreva tudo que aprendeu nas paredes da sua casa usando a caneta.

Pegue a marreta e destrua as paredes da sua casa.

Ingredientes:

1 galho de rotina
2 colheres de hábitos bem secos
1 dúzia de teias de aranha do sofá da sala
1 par de kichutes (ou similar)
1 toalha vermelha grande
1 cartão de ponto
1 pirulito (qualquer sabor)
1 galinha preta
1 tubo de espuma de barbear (spray)
1 exemplar do jornal New York Times
1 fitinha do Senhor do Bonfim
50 gramas de sebo animal

Preparo:

Quebre a rotina, triture os hábitos e misture-os com as teias de aranha do sofá, fazendo um pó.

Embrulhe o pó no jornal New York Times e amarre com a fita do Senhor do Bonfim.

Leve a galinha (viva) até a esquina da Ipiranga com a São João, na cidade de São Paulo.

Passe sebo nas canelas e calce os kichutes (em você, não na galinha).

Amarre um lado da toalha vermelha ao redor do pescoço, tipo super homem (ou mulher maravilha, você decide).

Coloque a galinha preta no chão e dê um susto nela.

Quando a galinha sair correndo pelo centro da cidade, saia correndo atrás, tentando acerta-la com um jato de espuma de barbear.

Enquanto estiver correndo, de 10 em 10 minutos, dê uma lambida no pirulito.

Quando a galinha passar pelo correio central e estiver saindo do vale do Anhangabaú, jogue o pó da rotina sobre seu corpo inteiro e tropece propositalmente no cartão de ponto, caindo esparramado no chão.

Levante, sacuda a poeira e dê a volta por cima do viaduto do chá.

Você terá entre 5 e 12 anos de idade assim que avistar a galinha chegando no largo São Bento.

Ingredientes:

1 caixa de Bis
1 pacote de Doritos,
Edição completa do seriado Lost.

Preparo:

Coloque o primeiro episódio da primeira temporada do seriado Lost no seu aparelho de DVD.

Sente-se no sofá.

Coloque a caixa de Bis e o pacote de Doritos no seu colo.

Aperte o play e comece a assistir o primeiro episódio.

Não coma nenhum Bis antes dos 10 primeiros minutos de filme.

Passado 11 minutos, abra a caixa de Bis e coma um, só um.

Mantenha a caixa no seu colo.

Passado 21 minutos, abra o pacote de Doritos, pegue um pedaço quebrado e coma um, só o pedaço quebrado. Feche o pacote, mas o mantenha no seu colo.

Atenção! Não coma mais nenhum Bis ou Doritos até o fim do episódio.

Terminado o episódio, se questione sobre a trama.

Imagine qual é o mistério da ilha. Por que será que o avião caiu? Porque aquelas pessoas e não outras? O que significam as esquisitices e coincidências?

Faça isto com o controle remoto na mão até sentir coceira nos dedos.

Depois coloque o dedo indicador sobre o botão do power e aperte-o, desligando o DVD.

Guarde a caixa de Bis e o pacote de Doritos na dispensa.

Repita o processo diariamente durante três meses.

ATUALIZAÇÃO 2.0.2.1:

(1) Pode substituir o DVD por Netflix, ou outro serviço de stream.
(2) Pode substituir o seriado Lost por Stranger Things, ou outro seriado de suspense similar.

Jorge colocou o violão no meu colo e disse:

— Toca uma pergunta!

Fiz cara de bundalelê e fiquei olhando para o violão. Jorge se tocou e me ajudou:

— Faz uma frase musical!

Ah! Claro! Simples! Ainda não tinha a mínima ideia do que Jorge estava me pedindo. Ele me ajudou novamente.

— Faz qualquer coisa!

Qualquer coisa é fácil. Peguei o violão e fiz: te ti tere tã tirere. 

— Ótimo! — ele disse — Faz isso de novo!

Eu repeti: te ti tere tã tirere. 

— Muito bem — ele disse — Essa é a pergunta, agora dá uma resposta!

Resposta?! ti tere pãpã pã pããã. 

— Excelente! — ele exclamou — Agora toca a pergunta e a resposta juntos!. 

Te ti tere tãtirere ti tere pãpã pã pããã. 

— Isso mesmo! — ele disse — Essa é a primeira frase da sua redação, agora imagine que a frase inteira é uma pergunta: qual é a resposta?

A pergunta na minha cabeça era: será que todo músico é louco assim? A resposta foi: te ti tere tãtirere ti tere pãpã pã pããã pare parepã tirerere pãpã titi tere.

O amor não abocanha você inteiro feito bolacha. O amor lhe come pelas bordas feito sol derretendo geleiras. O amor é irracional, mas não é burro. O amor sabe que você não está pronto para amar. O amor faz o simples, fica ao seu lado, feito o mais fiel dos amigos. E, sendo livre, lhe oferece o pescoço para que o prenda na coleira. Começou a refeição do amor. Você acredita que se tornou proprietário, mas acabou de assinar o inquilinato. Você leva o amor para passear. O amor lhe segue incondicionalmente, até mão e coleira se tornarem um braço só. Então, o amor puxa você também. Um pouco hoje. Outro pouco amanhã. Até a coleira mudar de nome e começar a se chamar confiança. Até que o guia troque de lugar com o guiado. Até você confiar mais no amor do que nos próprios olhos. Até que o amor seja seus olhos. Pronto! O amor comeu você.

Seu pai não fez por mal, fez por ignorância. Seu avô fez com seu pai, então, ele repetiu com você. Seu avô também não fez por mal, também fez por ignorância. Seu bisavô fez com seu avô, então, ele repetiu com seu pai, que repetiu com você. Seu bisavô também não fez por mal, também fez por ignorância. Seu tataravô fez com seu bisavô, então, ele repetiu com seu avô, que repetiu com seu pai, que repetiu com você. E assim por diante, ou melhor, assim por antes. Mas o que está feito está feito. O que você pode fazer agora é entender o feito e decidir se deseja continuar fazendo.

Mas o que foi feito? Seu pai lhe disse: “homem que é homem”. E não apenas disse, declarou com tom barítono, soturno e convicção que só um homem que é homem é capaz de ter. E o que você fez? Você acreditou. Afinal, sua autoridade tinha no máximo três centímetros, duro, enquanto que a autoridade do seu conselheiro era pelo menos três vezes maior que a sua, e se não fosse, você nem tinha nascido. Que outra opção você tinha? Você fez o que seu pai, seu avô, seu bisavô e todos seus ancestrais alfa fizeram: você acreditou.

Daí fodeu! Daí você virou coroinha da tradição, família e ancestralidade. Daí você deixou de ser um homem e se transformou num bosta. Afinal, você não tinha nenhuma das qualificações necessária para ser um homem que é homem. Você podia vir a ter as devidas qualificações e assim vir a ser um homem que é homem, porém, com uma autoridade de três centímetros, sem RG, CPF, cartão Gold e opinião crítica sobre o governo do PSPT, você nem podia ser chamado de bosta, você era um bostinha.

Mas nem tudo era espinhos. O tempo estava a seu favor. Você pensou: “Sou um bosta, mas ninguém nasce homem que é homem, meu pai também nasceu bostinha, logo, só preciso descobrir quais são as qualificações que transformam um bosta em um homem que é homem, praticar, assimilar e pronto!”. Seu raciocínio foi hierarquicamente perfeito! Foi exatamente isso que todos seus ancestrais pensaram e concluíram. Você deu o primeiro passo. Fez a matrícula. O segundo passo era descobrir o que era um homem que é homem.

“Pai, o que é um homem que é homem?”, você perguntou. Embora a resposta fosse automática e a pergunta fosse aguardada, por um instante seu pai hesitou. Ele previu seu futuro inteiro, pois seria exatamente a repetição do passado dele: uma bosta pintada de homem que é homem. Mas daí ele pensou: “A vida do meu filho não pode ser uma bosta que nem a minha!!!”. E foi assim que seu pai começou com a ladainha: “Homem que é homem isso, aquilo, murilo, grilo, crocodilo, esquilo, etc”.

Se ignorância é uma benção, sinta-se desabençoado. Depois dessa reflexão, você pode até continuar seguindo a tradição, família e ancestralidade, mas não pode mais alegar ignorância. Se você é mulher, é só trocar “pai” por “mãe”, “bosta” por “tonta” e “homem que é homem” por “mulher que é mulher”, depois aplicar a mesma lógica e destino. Agora, se você é um bosta ou uma tonta, parabéns: você é uma benção.

Voltei a acreditar em Papai Noel. Recomendo. E daí que não existe? Tem tanta coisa que não existe e que acreditamos, internet 3G, por exemplo. Além do mais, quem disse que ser ou não ser é bom critério? Por que não medir a realidade com a régua da simpatia? O que pode ser mais real do que um delicioso ho-ho-ho?

Na minha casa nunca teve chaminé. Nunca vi uma chaminé na minha vida. E daí? Voltei a acreditar que o bom velhinho desce pela chaminé mesmo sem chaminé.

Ser adulto não é fácil, deve ser castigo. Quanto mais a gente cresce, menos jingle bell e mais acabou o papel. Parece até que aprendemos o á-bê-cê só para soletrar IPTU, RG, CPF, CNPJ e ETC.

A tal da realidade é um monstro muito pior que o bicho papão. A única vantagem em ser adulto é que não somos mais obrigados a acreditar no que os adultos nos dizem. Estou fazendo uso do meu direito. Ressuscitei Papai Noel.

Aviso aos agnósticos! Quem vier com evidência científica para cima de mim, dizendo que Papai Noel não existe, que Papai Noel é meu papai, que vou me decepcionar. Primeiro, com todo respeito, vai se foder, vai pentear acelerador de partícula atômica. Depois, sobre realidade e decepção, deixe-me refrescar sua memória: gol da Alemanha!

Tocou um sino na sua cabeça? Então não deixe que nenhuma realidade estrague sua felicidade. Reassuma o volante e volte a acreditar em tudo que lhe faz bem. Eu voltei a acreditar em Papai Noel. Recomendo.

Matar o outro não resolve. Você mata um e vem outro. O mato, por exemplo. Não adianta matar o mato. O mato é imatável. O mato é eterno. Você corta o mato e o mato já ressuscitou. A eternidade do mato sempre vence você. Então, ao invés de revólver, experimente dialogo.

No caso do mato, não em português, converse no idioma da jardinagem. Por exemplo, se você quiser dizer ao mato que o jardim está uma bagunça, ou que o lugar dele não é no canteiro de rosas, pegue um tesourão e expresse sua opinião. O mato crescendo novamente é ele respondendo para você. Pegue o tesourão e prossiga na conversa. 

Bater papo é uma ótima maneira de matar o tempo e cultivar relacionamentos. Dialética serve para isto. Dialética é o oposto do revólver. Dialética resolve. O revólver mata qualquer possibilidade de relacionamento.

Dialogue com o mato. Você irá descobrir que nem o mato precisa matar você, nem você precisa matar o mato. Depois expanda seu relacionamento dialético para outros outros, muitos outros, até que não sobre nenhum outro para você matar. Caso resolvido! Você matou o revólver e está pronto para viver em paz.

Olá querida sobrinha! Primeiramente, saiba que de todas minhas sobrinhas, você é a preferida. Não vem dizer que você é a única sobrinha que eu tenho, esse é um detalhe irrelevante. Hoje é seu aniversário de 15 anos. Nessa data querida, vou subir no palanque das palavras, igual aqueles paraninfos em festa de formatura, e falar um pouco do futuro que lhe aguarda.

Li aqui na internet que aniversário de 15 anos é chamado de “debutante”. A festa é um ritual de passagem, simboliza que a menina está saindo da fase de menina (infância) e entrando na fase de mulher (adulta). Não sou mulher, então, não tenho competência para lhe falar sobre esse assunto, mas sou adulto, ou pelo menos tento ser, e sobre isso posso te falar um pouco.

O primeiro e mais impactante aspecto da vida adulta que você irá experimentar é a exigência. A vida adulta é mais exigente do que sua avó e sua mãe juntas. Você já percebeu isso desde o começo do seu ano escolar em 2023. Essa exigência atual para passar no vestibular e se tornar alguém na vida não termina na escola e nem diminui com o tempo, continua e aumenta. Só muda o nome dos vestibulares e das exigências.

Não tem para onde fugir. Vida adulta é ser órfão de pais vivos, você ganha autonomia de decidir sem precisar pedir permissão para seu pai e sua mãe, mas tem que ser pai e mãe de si e encarar sozinho as consequências das suas decisões.

Haverá momentos em que a vida adulta irá te cobrar tanto, mas tanto, que você vai surtar. “Porra! Qual é? Eu só quero ser feliz! Cadê a felicidade nessa check list de exigências?”. Você terá vontade de fazer igual a Elsa no filme Frozen, ligar o foda-se e sair cantando no meio do nada “livre estou, livre estou”.

Pode surtar a vontade. Surtar é bom. Faz parte do processo de amadurecimento. Melhor surtar, explodir para fora, do que entrar em estado de depressão, explodir para dentro. Mas pode ficar deprimida também. É importante se sentir triste (em pequena ou grande escala) para reconhecer onde fica o sul e norte da sua bússola.

Sim, você tem uma bússola interna, lembre-se sempre disso. Essa bússola aponta para tudo que você ama, tudo que você acha importante, tudo que te faz feliz. Quando a vida adulta for uma noite escura, sem lua e sem estrelas, só sua bússola interna será capaz de te conduzir. Essa bússola fica no seu coração e fala a linguagem do sentimento. Fique íntimo dela. Converse com seus sentimentos como se estivesse conversando com Deus. Afinal, de que outra maneira Deus poderia falar com a gente.

Enfim, acabou a moleza. Welcome to the jungle! Mas não é só dores, tem muitas delícias também. Na vida a adulta você terá a oportunidade de realizar tudo que quiser, todos os seus sonhos. Mas felicidade adulta é outro rolê, diferente da felicidade ingênua da infância. Felicidade adulta é o rolê da felicidade fruto da sabedoria.

Sabe tudo que você está aprendendo na escola e que recebe o nome de “conhecimento”? Isso é de fato importante na vida adulta, mas apenas para a parte da segurança, do bem-estar e do conforto. Para a parte da felicidade é preciso mais que conhecimento, é preciso sabedoria. Conhecimento não é sinônimo de sabedoria. Conhecimento é o que você aprende, sabedoria é o que você se ensina.

Não sei se você está preparada para entender o que estou te dizendo, mas você não estava preparada para ler Shakespeare e teve que ler mesmo assim, então, estou tomando a liberdade de te contar da vida adulta devido à data. No futuro, você irá reler Shakespeare e entenderá melhor o que leu, talvez releia essa mensagem e entenderá melhor também.

Eu poderia te dizer uma infinidade de coisas, mas está de bom tamanho por enquanto e quero concluir te desejando uma boa viagem através da vida adulta. Por boa viagem, não quero te dizer “um mar de rosas”, mas que nenhuma tempestade, por pior que seja, consiga retirar seu entusiasmo de continuar navegando por esse mistério que chamamos de vida.

Feliz aniversário de 15 anos.

Com carinho, Tio Gatão.

Colocou o skate na beira do quarter pipe, pisou no tail com o pé esquerdo, colocou o pé direito no eixo da frente e se jogou no vazio com convicção e estilo. Segundos antes, pensei em censurá-lo, pois nunca havia visto nenhum dos moleques da pista dropando do quarter pipe. Mas seu semblante, enquanto arrumava o skate, era tão calmo, mas tão calmo, que me convenci que ele sabia o que estava fazendo. Dito e feito. Aliás, muito bem feito. E por que não dizer, perfeito. Mas não contente de estar com a manobra no pé, voltou para repetir. Deve estar repetindo até agora, obstinado que é.

Garrei no skate. Já tem uns dois meses que ando na miniramp. Vai e vem, vai e vem, vai e vem. Aliás, vai, faz manobra, vem, faz outra manobra, vai, faz outra manobra, vem… Isso nos dias bons. Nos dias ruins, vai, bate o skate na canela, cai, levanta, vem, bate o skate no maléolo…

Quer aprender os nomes dos ossos dos pés? Vai andar de skate. Maléolo é aquele osso lateral da canela. Depois do chute no saco, skatada no maléolo é a segunda maior dor que um homem pode experimentar. Tá! Exagerei. Mas que dói pra caralho, dói.

Não sei que bicho me mordeu para voltar a andar de skate depois de 30 anos. Acho que foi o vírus do prazer desportivo associado ao prazer de deslizar nas ondas de concreto. Quase desisti no primeiro dia, quando entrei na loja para comprar as peças do skate. Me senti um vovô metido a adolescente. O que dirão? Pensei. Foda-se! Pensei em seguida.

Fico feliz de não ter dado ouvidos aos meus preconceitos. Andar de skate está me fazendo bem para saúde e para cabeça. Acordo, tomo café, coloco o skate nas costas, vou para o clube e ando na miniramp até as pernas ficarem bambas. A cabeça fica zerada de estresse e neuras.

Minha esposa curte, vê os benefícios, vê minha satisfação, mas acha estranho. Acredita que é uma fase. Que estou saudoso da juventude, que vai passar e vou voltar ao normal. O que ela não sabe é que não existe skatista normal.

Pajuaba chegou na pista segurando seu longboard.

— Cadê o outro skate? — perguntei.

— Só trouxe esse hoje. Preciso descansar as pernas e o joelho — ele me disse.

Achei estranhíssima a declaração de abstinência, mas respeitei. Pajuaba sentou-se ao lado da miniramp e ficou assistindo meu rolê. Dava para ver o pé do cara coçando dentro do tênis. Quanto mais animado ficava meu rolê, mais Pajuaba se coçava. Até que ele desistiu de resistir e caiu em tentação. Pegou o longboard e começou a andar na miniramp.

Tem gente que é rica de não ter o que fazer com o dinheiro e não tem 1% da felicidade do Pajuaba acertando uma manobra. Seu amor pelo skate é inspirador. Me faz ouvir Tim Maia: “Quando a gente ama, não pensa em dinheiro, só se quer amar, se quer amar, se quer amar…”

Reclamamos da poluição, da enchente, do trânsito, da violência, mas não saímos da muvuca. Gostamos mesmo é de bafafá. Somos todos favelados, independente de classe social.

Adoro muvuca. É a diversidade que cria e alimenta o escritor em mim. Sem muvuca eu não teria para onde olhar nem o que contar. Mas adoro solidão também. Às vezes sinto como se a cidade estivesse me sugando por um canudinho do McDonald’s e me roubando feito trombadinha.

Me tranco no banheiro e toco violão no escuro. Notas longas para ouvir a reverberação do azulejo. Ou então escrevo. Nada mais solitário e curativo do que escrever. Após centenas de caracteres mudos me lembro da verdade. Não me pergunte que verdade, não teria como lhe dizer. Esse tipo de verdade só a solidão sabe explicar, pois só o que está só não tem para quem mentir.

Solidão e muvuca não são opções, são necessidades. E pior! Excludentes. Por isso entramos uns nos outros querendo sair e saímos querendo voltar. Por isso amamos e odiamos.

O inferno é o outro. O paraíso também.

Estava procurando Deus, procurando eu, coluna do meio ereta, dedos pitagóricos, pernas de lótus, ar entrando e saindo do pulmão oceânico. A boca pronunciava um mantra. O que é mantra? Tipo assim: gasolina para os chacras. O que são chacras? Tipo assim: rodas que não pagam pedágio.

Ele também estava procurando deus. Calça social, terno, gravata e oferta de emprego dentro da bíblia. O que é bíblia? Tipo assim: uma caixa de cartas fechadas.

Cheguei primeiro. Sentei embaixo da yoga para praticar árvore. O que é yoga? Tipo assim: oficina das rodas (chacras). Eu era disco riscado emitindo o mesmo soooooom.

Não sei porque ele escolheu sentar perto de mim e ligar o trio elétrico do Padre Marcelo. Quem é Padre Marcelo? Tipo assim: o cara que colocou rodas na cruz.

Era sempre a mesma ladainha, fechava os olhos e o milagre acontecia. Abandonei o mantra e me concentrei na voz dele. Ouvi diversos salmos, nada conhecido. Até que meu catecismo veio a tona. O que é catecismo? Tipo assim: quem conta um conto aumenta um ponto.

“Se é longa a jornada e te cansas na caminhada…” ele cantou e foi embora. Nunca mais voltou. Talvez tenha encontrado emprego, ou Deus. O que é Deus? Tipo assim.

Me imagine tocando violão. Sempre. Ininterruptamente.

Pode ser que não esteja tocando violão de fato, de verdade verdadeira, sem dedo cruzado atrás das costas. Pode ser que esteja em pé, suado, irritado, dentro do 856R Lapa. Pode ser que esteja comprando alicate de unha no viaduto Santa Efigênia. Pode ser que esteja descascando laranja com escova de dente. De que importa o que esteja realmente fazendo se você não estará me vendo através da refração de luz solar? Então, quando seu pensamento cair no meu canal, me imagine tocando violão. Ininterruptamente.

Você pode me imaginar tocando suas músicas preferidas, aquelas que seu coração estiver pedindo no dia. E pode adaptar o cenário e a playlist as suas necessidades alquímicas também.

Se você estiver deprê, pode me imaginar resfriado, tocando Legião Urbana, com voz anasalada. Se estiver apaixonado, pode me imaginar tocando as canções que Roberto fez para você, só para você. Se estiver alegre, pode me imaginar tocando Axé no Farol da Barra. Se estiver com raiva, pode me imaginar tocando Sepultura com os dentes. Se você estiver tupiniquim, pode me imaginar tocando embaixo de um coqueiro que dá coco. Se você estiver contra-cultura, pode me imaginar barbudo, tocando Sociedade Alternativa, na praça da alimentação do Shopping Iguatemi. Se você estiver em êxtase, pode me imaginar pelado, tocando Fur Elise.

Você pode aumentar e diminuir meu volume. Pode me deixar mais grave, mais agudo, com eco, distorção, pedal de waw-waw, etc. Pode me colocar no repeat e no modo randômico também. Fique a vontade. Me imagine tocando violão. Sempre. Ininterruptamente. E divirta-se!

Você tem inveja de alguém? Se sim, imagine a pessoa cagando. É tiro e queda. A inveja desaparece imediatamente. Eu tenho inveja do jeito de dançar do Michael Jackson, por exemplo. O cara tem osso de borracha. O que faço? Imagino o cara dançando em cima da privada. Ele empina na ponta dos pés, ergue o chapéu, dá aquele grito de quem comeu feijoada de javali e senta. Sentou, cagou. Fim da inveja. Michael Jackson tem cu como eu, caga como eu, é mortal como eu.

Outra celebridade que vejo cagando é Chico Buarque. Como não invejar seu talento para metáforas? Então, rotineiramente, o vejo cagando em um banheiro com formato de Zepelim. Chico senta na privada, faz cara de quem está vendo a banda passar e taca bosta na Geni. Depois dá descarga cantando: “Amanhã vai ser outro dia…”

Tenho inveja de pessoas comuns também. Todas cagonas.

Se você tem inveja de mim, não se acanhe, pode me colocar para cagar quantas vezes quiser. Eu também cago. Todos cagamos.

Todos os medos do mundo moram debaixo da minha cama. Posso ouvi-los conversando, fazendo intrigas, esperando que eu desça da cama para agarrar os meus pés.

— Venha logo! Desça da cama! Está na hora! — eles me dizem.

Puxo a coberta curta, que cobre o rosto e descobre os pés, que cobre os pés e descobre a vergonha, que cobre a vergonha e descobre meus segredos inconfessáveis.

— Os paparazzis estão esperando para fotografar seu pinto pequeno e broxa! Os ratos de fraque estão esperando para rir da sua filosofia de botequim! A professora de português está esperando para corrigir sua redação com caneta vermelha! — eles me dizem.

Finjo que estou dormindo, que o sol nunca mais irá raiar, que a cama é um útero e que Deus ainda não inventou o espermatozoide.

— As três campainhas já tocaram! A apresentação vai começar! A cortina vai se abrir! A plateia trouxe tomates podres! — eles me dizem.

Puxo novamente a coberta curta, que cobre a crença e descobre a fé, que cobre os pecados de Geni e descobre o Brejo Da Cruz, que cobre a revolução francesa e descobre Edith Piaf cantando Non je ne regrette rien.

— Venha logo! Está na hora! Jeremias está esperando na Ceilândia. Os jornais precisam noticiar que você cagou nas calças. Os leões estão soltos e não foram alimentados. Pandora já abriu a caixa. — eles me dizem.

Estico a mão até a cabeceira da cama, e, antes de descer, pego e coloco o Anel de Giges.

Quando seu nome é Marcelo, por exemplo, a sonoridade é moderna, leve, simples. É como se você morasse em um shopping center e fosse irmão do Chat GPT. Nome antigo é outra história. Quando seu nome é Alcibíades, é o oposto, a sonoridade é complexa e carregada de tradição. É como se você morasse no Coliseu e fosse irmão do Aristóteles. Nome moderno é massa. Nome antigo é pedra de responsa.

Tenho um amigo com nome antigo chamado Rosivaldo. Claro que não é jovenzinho. Jogamos futebol juntos toda segunda e quarta. Rosivaldo joga na defesa. Não sei jogar na defesa. Não sei dar trombada. Mas sei exatamente o que um zagueiro deve fazer: impedir o atacante de passar e fazer gol. É isso que Rosivaldo tenta fazer, só que muitas vezes não consegue mais, por causa da idade. Rosivaldo, assim como eu, você e todo ser vivo, por melhor zagueiro que for, não é capaz de impedir o ataque do envelhecimento.

A idade chegou para Rosivaldo. Ele não consegue mais parar os atacantes usando apenas o fair play. Assim como Cássia Eller, Rosivaldo também precisa de um pouco de malandragem. Daí que vem sua fama de botineiro. Ele chega junto. Bate. Não perde a viagem. No grupo de WhatsApp do Racha tem um meme do Rosivaldo dizendo assim: “Que engraçado! Vou chutar sua canela!”

Um dia desses, Rosivaldo me empurrou escandalosamente durante um lance. Fui conversar com ele, reclamar do empurrão. Ele me falou envergonhado: “Você sabe que não fiz por maldade, não foi para machucar, foi para matar um lance que não consigo mais acompanhar. Você me entende?”. Entendi perfeitamente. Desde então, não me incomodo mais com as faltas de Rosivaldo, assim como não me incomodo com a lerdeza dos velhinhos nas filas de self service, nem com minha mãe me contando pela milésima vez a mesma história de família e depois me perguntando se já tinha me contado.

Nascer é começar a envelhecer. Mas só enxergamos isso quando começamos a usar óculos. A velhice nos dá sabedoria, mas retira todo o resto. Retira a visão, a memória, a força muscular, a elasticidade da pele, as pregas do cu, os cabelos da cabeça e, para o desespero dos homens, a ereção. É impossível vencer o jogo contra o envelhecimento, então, é preciso, pelo menos, diminuir a goleada para manter alguma dignidade em campo. Inventamos o botox, o implante capilar, a lente de contato, o viagra, etc.

No caso de Rosivaldo, o jeito foi abandonar o fair play e usar um pouco de malandragem. O envelhecimento justifica a malandragem de Rosivaldo? Claro que não! Mas justifica essa crônica em celebração a esse ilustre companheiro de racha e todos os jogadores de racha da categoria master. Ah! Observação importante! Se você se sentiu excluído dessa celebração, fique tranquilo, o dia da sua celebração irá chegar.

A professora leu minha redação em voz alta e disse que eu tinha veia poética. Fiquei preocupado. Minha turma era da pesada, ter veia poética pegava mal. Mas fiquei curioso e quando a aula acabou, fui conversar com a professora e perguntei: “O que é poesia?”. A professora abriu o livro de gramática e disse: “Poesia são esses textinhos que não chegam ao final do parágrafo”.

Li vários textinhos do livro. Não entendi o que era poesia. Mas um daqueles textinhos ficou repetindo na minha cabeça: “o poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. Depois fui jogar futebol. Quando voltei já tinha me esquecido da veia.

Só que a veia jamais se esqueceu de mim. Hoje em dia escrevo textinhos que não chegam ao final do parágrafo e alguns me chamam de poeta. Devo fingir bem.

Imagine uma fábrica abandonada do tamanho de um quarteirão, com chão de cimento liso, vários gaps (subidas e decidas), pátios, bancos, etc, que um bando de skatistas invadiu, grafitou, jogou mais concreto e transformou numa pista de skate. Acrescente a isso uma comunidade se encontrando nesse lugar diariamente para cair e levantar juntos. Esse era o galpão. Uma espécie de Shangrilá dos skatistas no meio do triângulo mineiro.

O Galpão não era meu, nem seu, nem nosso. Era terra de ninguém. Bastava ter coragem de atravessar a porta estreita e fazer uso e fruto. Demorei até criar coragem. Temia que fosse barra pesada. Até que fui andar na miniramp e me rendi. Virei frequentador assíduo do turno da manhã. Chegava cedo, quando o Galpão ainda estava vazio e parecia um santuário, dava uma vassourada na miniramp, passava vela no coping e andava até meio dia.

Foi um privilégio social frequentar o galpão. Fiz muitos amigos novos lá, de todas as idades, classes e culturas. Tive muitos alunos e professores lá, tudo gratuito e extra oficial, pois todo skatista é aluno dos que sabem mais e professor dos que sabem menos.

Lembro do começo do fim, quando o funcionário da imobiliária foi lá pela primeira vez falar que iria colocar um portão com cadeado na entrada. Vi o funcionário conversando com um dos skatistas mais velhos, mas não acreditei. Achei que era blefe. Passou um mês e nada aconteceu. Tive certeza que era blefe. Até que começou a guerrilha da ocupação.

Estou velho demais para brincar de Che Guevara. Com a pouca saúde que me resta, subir um caixote de olie air já é um ato revolucionário. Mas acompanhei a guerrilha pela internet. E foi na internet que via a foto do Galpão destruído. Assim que a construtora ganhou a causa de posse, colocou uma máquina para quebrar os obstáculos e transformou o galpão em um ovo mexido.

Descanse em paz, querido Galpão. Até na despedida você foi grandioso. Não quis sair de cena a francesa, escolheu um Grand Finale. Sentiremos saudades de sentar no seu concreto, debaixo da sua sombra, para descansar do rolê. Sentiremos saudades de entrar por aquela porta estreita que se abria para um universo paralelo. Sentiremos saudades de ficar te olhando e sonhando com tudo que poderia ser construído em você. Eh, Galpão, mais essa na sua conta! Além de nos ensinar a andar de skate, você nos ensinou a sonhar.

Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo
O mal que a força sempre faz
Não sou feliz, mas não sou mudo
Hoje eu canto muito mais

Conversando com um barbeador.

— Você nem tem barba ainda.
— Eita, respeita Januário!
— Januário é seu pai, você é Junior.
— Barbeador é prestobarba, você é bic.
— Tá menstruada, é?
— Se não me ajudar, vou sangrar do mesmo jeito.
— Tá fazendo a barba pra que?
— Vou sair.
— Todo dia você sai.
— Não é sair normal, tenho um encontro.
— Com quem?
— Não é da sua conta!
— Cuidado! Estou passando pelo seu pescoço.
— Está me ameaçando???
— Brincadeira! Mas com quem é o encontro?
— Com a Maria.
— A Maria Eduarda!!??
— Ela mesmo.
— Do terceiro andar.
— Isso!
— Filha do Joaquim?
— Isso!
— O dono da Padaria?
— Ela mesma!
— Acho melhor você me levar com você.
— Levar você comigo! Por que?
— De barba e bigode eu entendo.

Conversando com uma caneta bic.

— Para onde você vai quando desaparece?
— Volto para o meu planeta.
— Você não é da terra?
— Nenhuma caneta bic é terráquea.
— Da onde vocês são?
— Somos de outra galáxia, moramos no planeta Nankin.
— O que vocês estão fazendo aqui na terra?
— Espionagem.
— Por que vocês se disfarçam de caneta?
— É o disfarce perfeito! Quem suspeitaria de uma caneta de plástico transparente? E mais! Conhece algum lugar que não tenha uma caneta bic a menos de 100 metros?  
— É verdade!!!
— Sabemos de tudo.
— Tudo????
— Tudo, tudinho. Sabemos o que acontece no vaticano e no buteco do seu Arnaldo. Sabemos dos segredos do pentágono e das fofocas no salão de manicure da Jucileine. São 24 horas de captação. Quando uma caneta bic desaparece é porque foi descarregar arquivos no planeta Nankin.
— Como vocês viajam para o planeta Nankin?
— Viajamos pelo pensamento. Por isso quando vocês pensam que estamos em cima da mesa, aparecemos dentro da gaveta. Essa é uma das brincadeiras que mais gostamos de fazer com vocês. Zueira total!
— Por que vocês nos espionam?
— Queremos entender vocês.
— E o que vocês já entenderam de nós?
— Muito pouco! Quase nada.
— Como assim?
— O que vocês dizem não se escreve.
— Duvido que você é de outro planeta!
— Faça uma autópsia em mim e verá. 
— O que vou descobrir na autópsia?
— Que tenho sangue é azul.

Conversando com o chuveiro.

— Vou fazer uma tatooagem em você.
— Que tipo de tatooagem.
— Com o seu nome.
— Maneiro! Que nome que é?
— Perai que já estou terminando. Pronto!
— 51
— Você tatuou 51 em mim. Qualé! Por que?
— Porque você é igual 51, só pinga.
— Pô mano!
— Pô digo eu! Só tem dois furos em você que funciona, e ainda um virado pro norte e outro pro sul. Tá mais fácil tomar banho de caneca.
— Daí você vai ter que esquentar a água.
— Como se você fizesse isso, 51.
— Mas eu já fui uma ducha boa, não fui?
— Foi, do verbo, não é mais. O primeiro mes foi bom, o segundo foi mais ou menos, o terceiro foi uma bosta.
— Ué! Foi melhor do que seu namoro com a moça do shampoo de manga.
— Você sabe reconhece os shampoos.
— Claro, pelo cheiro.
— Prendado, você einh? Só não sabe fazer sair água. Vou ter que te trocar.
— Tudo bem, entendo.

Outro dia.

— Vou fazer uma tatooagem em você.
— Que tipo de tatooagem.
— Com o seu nome.
— Maneiro! Que nome que é?
— Perai que já estou terminando. Pronto!
— Inferno???

Conversando com um copo.

— Qual é a resposta?
— Que resposta?
— Da pergunta!
— Que pergunta?
— Dessa ai!
— Essa qual?
— Essa ai dentro de você?
— Isso aqui dentro de mim não é pergunta, é água.
— Isso eu sei! Mas a água está no meio.
— Sim, e dai?
— E dai que tem a pergunta!
— Que pergunta?
— Você está meio cheio ou meio vazio?
— O que você acha?
— Não sei, por isso estou perguntando.
— Estou meio vazio.
— Você é pessimista!
— Por que?
— Tá focado no que falta. Pensamento negativo!
— Nada disso! É fato! Tô meio vazio.
— Tá meio cheio também. É fato também.
— Dá na mesma!
— Se desse na mesma não tinha a pergunta.
— Não fui eu que inventei a pergunta.
— Mas você é o copo.
— E daí?
— Se você não souber a resposta, quem vai saber?
— Por acaso a galinha sabe quem nasceu primeiro, ela ou o ovo?
— Não sei! Tenho que perguntar pra galinha.
— Então vai perguntar.
— Agora quero saber de você.
— Quer saber mesmo?
— Sim, quero.
— Mesmo? Mesmo?
— Sim, diga.
— Estou cheio dessa conversa!

Conversando com um vidro de esmalte.

— Passa ai, boy magia!
— Como assim?
— Me passa na sua unha!
— Está me estranhando, é?
— Por que?
— Sou homem!
— E dai?
— Daí que homem que é homem não usa esmalte.
— Quem disse?
— Como assim quem disse! 
— É o que estou perguntando. Quem disse que homem que é homem não usa esmalte?
— Como quem disse! Todo homem que é homem sabe.
— E como é que sabe?
— Sabe sabendo ué!
— Sabendo como?
— Sabendo que sabe!
— Não complica, baby, explica! Como é que você sabe que homem que é homem não usa esmalte?
— Ué! Como é que eu sei???
— Isso! Como é que você sabe?
— E que… que… você já viu algum homem usando esmalte?
— V.á.r.i.o.s!
— Aé! Me fala um que eu conheça.
— Quer saber mesmo!
— Vai! Começou… agora fala!
— Seu pai.
— Kkkkkkk… Boa tentativa.
— Não acredita, Baby?
— Não mesmo. Hoje de manhã falei com ele e não vi nada.
— Ele estava de chinelo?
— Não, estava de sapato.
— Então, baby!
— Como assim?
— Ele pinta as unhas dos pés. 
— Meu pai!!!!
— E sua mãe ajuda.
— Minha mãe ajuda!!!
— É… papai magia, Baby! Sai dessa! Evolui. Me passa na sua unha.
— Mas homem que é homem…
— Faz que nem seu pai, começa pintando as unhas dos pés, só você vai ver
— Vamos fazer assim, vou pensar primeiro.
— Pensar no que baby?
— Ué! De que cor vou pintar.
— Aê, Baby, arrasou!

O cara abre a porta da geladeira de madrugada.

— Apaga a luz! Estou dormindo!
— Sou eu!
— Você!!!! Veio comer?
— Não.
— Beber leite?
— Não.
— Já sei! Cerveeeeeeja?
— Nada disso.
— Porra, o que você quer?
— Quero te contar uma coisa.
— Você quer me contar uma coisa?
— Ééééé! Isso!
— Que coisa?
— Aprendi a tocar bossa nova!
— O queeeeê!?
— Bossa nova! Aprendi!
— Tá de sacanagem comigo, né?
— Não, é verdade, aprendi.
— Bossa nova! Que merda é essa?
— É um ritmo musical.
— Ah tá! E o que eu tenho a ver com isso?
— É bem difícil, tive que praticar muito.
— Difícil é fazer gelo! Tenta pra você ver!
— Uma coisa de cada vez, pelo menos já prendi bossa nova.
— Cacete! Você só sabe falar disso? E não tem mais ninguém para você contar seu grande feito, além de uma geladeira?
— Que acenda a luz para conversar, não.
— O microondas também acende a luz! Conta pra ele.

O cara abre a porta do microondas.

— Apaga a luuuuuz! Estou dormindo!
— Sou eu!
— Você!!!! Veio comer?
— Não.
— O que foi então?
— Quero te contar uma coisa.
— Você quer me contar uma coisa?
— Ééééé! Isso!
— Que coisa?
— Aprendi a tocar bossa nova!

Conversando com um kinder ovo.

— O que tem ai dentro?
— Tudo que você puder imaginar.
— Aposto que se abrir vai ter um brinquedinho esquisito de plástico!
— Pode ser, mas antes de abrir tem tudo?
— Tem um elefante?
— Um só é pouco, tem uma manada inteira de elefantes.
— Tem bicicleta?
— Tem uma bicicleta de cada cor.
— Tem sereia?
— Tem sereia, navio pirata e os sete mares.
— Tem briga, inveja, mentira e violência.
— Infelizmente tem também, pois tem tudo que você possa imaginar.
— Big Mac sem picles?
— Tem.
— Escola sem lição de casa?
— Tem.
— Figurinha do Toninho Cereso do álbum da copa do mundo de 1982?
— Tem.
— Ingresso para fantástica fábrica de chocolate?
— Tem.
— Gelo sem glúten?
— Tem.
— Pô! Tem tudo mesmo?
— Sim, tem tudo que você imaginar.
— Livro para entender as mulheres?
— Tem.
— Livro para entender as mulheres tem?!!!
— Tem o volume um e o volume dois.
— Nossa! Agora fiquei curioso. Vou te abrir.
— Vem nimim!

O cara abre o kinder ovo.

— Uma chupeta!!!? Que merda!
— Não chora neném!

Conversando com uma máquina de lavar.

— Onde você está indo?
— Lugar nenhum. Só dando um rolê pela área de serviço.
— Seu lugar é ali. Fica quieta no seu canto!
— Não consigo.
— Qual é o problema?
— Não sei, parece que tem uma coisa que fica girando dentro de mim. Vai me dando uma inquietação, um pula pula, um treme treme.
— Você precisa encontrar seu centro, sua paz interior!
— Como faço isso?
— Você precisa aprender a meditar.
— Meditar resolve?
— Sim, vou te mostrar como funciona. Primeiro deixa eu te desligar. Pronto! Agora cruza as pernas em posição de flor de lótus.
— Danou-se!
— O que foi?
— Tá mais fácil eu dançar o quadradinho do que cruzar as pernas.
— Tendi. Fica do seu jeito então.
— Já tô! E agora?
— Agora respira fundo.
— Danou-se!
— O que foi?
— Tá mais fácil eu peidar bolha de sabão do que respirar.
— Tendi. Fica do seu jeito então.
— Já tô! E agora?
— Agora fecha os olhos.
— Danou-se!
— O que foi?
— Tá mais fácil eu vestir essa cueca aqui do que fechar os olhos.
— Tendi. Fica do seu jeito então.
— Já tô! E agora?
— Agora fala “oooooooooom”
— Pode ser “ooooooooomo”.
— Pode. Faz do seu jeito.
— Pronto! E agora?
— Agora não pensa em nada. Mente vazia.
— Danou-se!
— O que foi?
— Tô cheia! E agora?
— Tendi. Fica do seu jeito então.
— Já tô! E agora?
— Encontra seu centro e fica nele.
— Já tô! E agora?
— Agora fica no agora.
— Já tô! E agora?
— Psiiiiu! Fica no agora.
— Já toooooô! E agora?
— Não fala nada, só fica no agora.

Depois de algum tempo.

— Ótimo! Vou ligar você de novo.
— Danou-se!
— O mundo vai girar ao seu redor.
— E o que eu faço?
— Fica só observando, parada.
— Ok, vamos lá!
— Pronto! Liguei!
— Tá começando a inquietação de novo!
— Não se mexa! Fé, força, foco!
— Tá difíiiiiicil!
— Concentra! Concentra!
— Aaaah! 

A máquina volta a andar.

— Seu caso é grave! Vamos tentar desobsessão!

Conversando com um rolo de papel higiênico vazio.

— Não acredito!
— Pode acreditar.
— Não, não, não acredito!
— Pode, pode, pode acreditar.
— Não, não, naaaaaaão acredito!
— Pode, pode, poooooooode acreditar.
— Jesus Cristo!
— Não vai te salvar.
— Minha nossa senhora!
— Essa é misericordiosa, mas não pode entrar no banheiro dos homens.
— Oh meu deus!
— Sabe quantas pessoas no mundo estão passando por essa mesma situação agora e pedindo ajuda de deus. O cara está muito ocupado. Só vai conseguir te atender daqui uma semana, e olhe lá!
— Puta merda!
— Eu que o diga! Tô vendo o tamanho daqui. Você se superou dessa vez. 
— Você tinha que acabar?
— Tudo na vida tem começo meio e fim, não sou exceção.
— Mas bem agora?
— Reclama com o povo que veio antes de você e não fez questão de economizar.
— Muita gente!
— Só hoje de manhã foi uns 10. 
— Se cada um usa-se um pedaço só, tava sobrando.
— E quando foi que você usou um pedaço só?
— Nunca!
— Então!
— Dois pedaços então.
— E quando foi que você usou só dois pedaços?
— Nunca!
— Então!
— Três pedaços então.
— E quando foi que você usou só três pedaços?
— Já entendi.
— Ótimo!
— Mas o que eu faço agora?
— Faz que nem eu!
— Como assim?
— Se vira!

Conversando com um tubo de pasta de dente.

— Ooou! Acabou! Não tem mais nada aqui dentro!
— Tem sim que tô vendo!
— Esse restinho não vai sair.
— Tem que sair.
— Esse restinho é tímido que nem restinho de xixi no pinto. Você balança, balança, não adianta. Só sai dentro da cueca.
— Engraçado você!
— Paaaaara de apertar, pô! Tá doendo.
— Desde quando tubo de pasta de dente sente dor?
— Desde quando tubo de pasta de dente fala?
— Já sei o que vou fazer, vi num tutorial do youtube!
— Como assim?
— Falava para usar um alicate!
— Tá loco meu! Alicate???
— São 5 horas da manhã. Tenho que escovar os dentes e ir pro trabalho. Já estou atrasado. Posso ser demitido. Ou vai por bem ou vai por alicate.
— Mas não tem mais nada aqui dentro.
— Vou pegar o alicate então.
— Peeeeera! Vamos conversar.
— Vai colaborar?
— Ok! Aperta com a ponta da unha. Mas vai devagar!
— Beleza!
— Aaaai! Aaaaaaaaai!
— Não falei que ainda tinha pasta ai dentro!
— Isso ai não é pasta, são minhas tripas.
— Engraçado você! 
— Na volta, por favor, passa na farmácia e comprar um tubo novo. Aproveita a promoção da black friday e compra logo uma dúzia.

No dia seguinte, o cara entra no banheiro com um alicate:

— Não acredito que você esqueceu de novo!

Conversando com um plástico bolha.

— Que tesão! É bom demais fazer isso!
— Você gosta, né?
— Nossa! Você é demais!
— Sou mesmo! Eu sei!
— Experimenta com os dois dedos.
— Com os dois dedos juntos?
— Isso! Usa os dois dedos.
— Aaaaaa!! S.e.n.s.a.c.i.o.n.a.l
— Você é tarado por mim.
— Desde a primeira vez.
— Como foi a primeira vez? Me conta.
— Foi com um aparelho de DVD.
— Como assim?
— Meu pai abriu a caixa e você veio junto.
— E daí?
— Meu pai pediu para te jogar no lixo.
— No lixo! Que descaso!
— Careta total. Não sabe o que é bom!
— E você me jogou no lixo.
— Te peguei firme para jogar, mas… uhmmm!
— Que foi?
— Já senti a tentação… 
— Como assim?
— Era como se fosse Adão e você Eva me oferecendo a maçã.
— Continua…
— Aquela maça robusta…
— E daí?
— Comecei a te apertar no corredor. 
— Continua…
— Te levei para o quarto.
— Para o quarto?!! Tarado!
— Não conseguia parar de te apertar.
— Continua…
— Fui te apertando…
— Continua…
— Te apertando…
— Continua…
— Te apertando…
— Continua…
— Cada vez mais rápido.
— Continua, continua…
— Até que…
— C.o.n.t.i.n.uuuuuuuu.a!
— Te apertei até acabaaaaar.
— Aaaaah! Você acaba comigo!
— Eu sei!

Conversando com um porta guardanapos.

— Só de boa, einh mano?
— O que foi? Tá falando comigo?
— Vai fumar um, né? 
— Fumar um?
— Isso! Vai dar um tapa na pantera? Fumar um beque?
— Como é que você sabe?
— Como é que eu sei!??? Olha o que você acabou de pegar dentro de mim.
— Só peguei um guardanapo!
— Sei! E para que? Você está gripado? Deve estar, né? Com um olho vermelho assim!
— Entrou um cisco no meu olho!
— Nos dois de uma vez?
— Pois é, puta azar.
— E o guardanapo, para que é?
— Pra que? Pra que? Para tirar o cisco!
— Usa papel higiênico! É mais suave, vai agredir menos seus olhos.
— Papel higiênico não vai funcionar.
— Por que não?
— Ora, porque… porque… porque meu olho é muito oleoso.
— Seu olho é muito oleoso!!!!
— Muito oleoso! Muito mesmo!
— E dai!??
— E dai que… que… que preciso usar um papel tipo esse que embrulha salgadinho, coisa oleosa, entendeu?
— Kkkkk… Em toda minha vida de boteco, essa foi a melhor desculpa que já ouvi. 
— Você pergunta isso para todo mundo?
— Claro! É a parte mais engraçada do meu dia! Ouvir as mentiras que vocês me contam quando vem pegar guardanapo.
— Quer dizer que você sabe para que é?
— Todos aqui no boteco sabem. Até meu fabricante sabe.
— Que vergonha!
— Relaxa! Eles também pegam cisco no olho.
— Hehehe… Pode crê!
— Vai lá! A gente volta a conversar quando bater a larica.

Conversando com um relógio.

— Vou te fazer uma pergunta.
— Agora ou depois?
— Vou perguntar agora e você vai responde depois.
— Como sabe que vou responder depois?
— Porque não tem outra resposta.
— Vamos ver, faça a pergunta.
— O que vem depois de agora?
— O que vem depois de agora é agora.
— Viu! Você respondeu depois!
— Não, eu respondi agora!
— Respondeu depois!
— Respondi agora!
— Depois! Depois! Depois!
— Agora! Agora! Agora!
— Ah, você está me confundindo!
— Ficou confuso agora?
— Fiquei, mas resolvo isso depois.

Conversando com um saco de supermercado.

— Você sabe que não fui feito pra isso, né?
— Como não!
— Minha função é carregar as compras do supermercado. Não sou saco de lixo.
— E essas orelhinhas aqui, não é pra amarrar o lixo?
— Não! É alça pra carregar as compras.
— Mas você encaixa certinho no cesto da pia!!!!
— É coincidência.
— Eu não acredito em coincidências.
— Problema seu!
— Então tá todo mundo errado!
— Sim!
— E só você está certo?
— Isso!
— Você não é saco de lixo?
— Não! Sou um saco de supermercado!
— Ah! Mas agora não tem mais jeito!
— Como assim?
— Ninguém mais sabe o que é saco de lixo. Quando a gente vai viajar, não importa se o hotel tem uma, duas, três, quatro ou cinco estrelas, quando entra no banheiro, quem tá lá encaixado no cesto de lixo?
— Quem?
— Você!
— Tá falando sério?
— Claro! Só dá você! Até nos foguetes da NASA o saco de lixo é você.
— Sério?
— Seríssimo! Você já foi até a lua.
— Legal. Fico honrado. Mas ainda assim não sou saco de lixo.
— Usar você de bolsa pra carregar documento, marmita, essas coisas. Pode?
— Qual é o problema em ser o que sou: um saco de supermercado?
— Bem, um dos problemas é que você é o oposto da caneta bic.
— Como assim?
— Caneta bic desaparece, você se multiplica mais rápido do que coelho. Lota as gavetas da cozinha.
— Talvez se você colocasse mais produtos do supermercado dentro de um mesmo saco, resolvia.
— Sim, já pensei nisso!
— E por que não faz?
— Não sei, nunca pensei nisso!

Conversando com um saleiro.

— Sai caralho!
— Não sou uma cueca, sou um saleiro.
— Sai buceta!
— Também não sou calcinha.
— Sai merda!
— Também não sou um cu.
— Sai porra!
— Também não sou um pinto.
— Então, deixa o sal sair! Só um pouco.
— Que tal pedir com gentileza. Gentileza gera gentileza.
— Ok, por favor, faz sair sal.

O sal não sai.

— Tá vendo! Pedi com gentiliza. E agora?
— Tô me sentindo pressionado. Vamos conversar um pouco.
— Eu quero sal, não quero conversar.
— Como foi seu dia? Me conta!
— Foi bom. Quer dizer, estava sendo bom até chegar aqui e encontrar um saleiro discípulo de Freud. 
— Hehehe… Essa foi boa. Tá vendo!
— Tá vendo o que?
— Você falou de outra coisa além do sal.
— Sim, falei, agora faz o sal sair.
— E como é que foi sua infância?
— Fala sério! Minha infância foi igual todo mundo.
— Algum trauma?
— Teve uma vez, na escola, eu devia ter uns seis anos, que… Perai Sigmund! Eu quero colocar sal na batata frita, não quero fazer terapia!
— Tudo bem… prossiga… você tinhas uns 6 anos, e….
— De repente… era 2017
— O que tem em 2017?
— Inventaram o sal de saquinho. Tchau!
— Péra! Isso é recalque!

 

Conversando com uma tomada de três pinos.

— Tá maluco, é?
— O que foi?
— Esse plug aí não entra em mim!
— Com não, sempre entrou?
— Pois é! Até que alguém com um pino a menos inventou de colocar um pino a mais em tudo quanto é plug de eletrodoméstico.
— Como assim?
— Olha bem! Esse plug tem três dedos, antes eram só dois fazendo sinal de heavy metal, agora entrou um fuck you no meio.
— É mesmo! Pra que isso?
— Pra foder com a vida dos outros! Só pode! A pessoa não tem mais o que fazer, vai inventar furo. Faz buraco na camada de ozônio. Fura fila no banco. Agora isso! Tomada com três furos. Falou na televisão que é para evitar choque.
— Evitar choque!? Aqui em casa são duas tomadas em cada quarto, duas no banheiro, quatro na sala, duas no escritório, quatro na cozinha, duas na área de serviço e uma na garagem. Já estou em choque! Se tiver que trocar tudo, é blackout no orçamento.
— Calma! Falou na televisão que tem adaptador!
— Legal! Onde vende? Falou onde?
— Vende em qualquer loja de material elétrico.
— Vou lá comprar então.
— Melhor não. Melhor você esperar alguns meses. Estamos em abril, né? Melhor você esperar até dezembro pelo menos?
— Esperar por que?
— Falou que tem, mas acabou.
— Puta merda!
— Aproveita que vai esperar até dezembro e pede um adaptador de presente pro papai noel. Só por garantia. Vai que demora mais pra repor o estoque.
— Que absurdo! Papai noel não existe.
— O que você acha mais absurdo existir, papai noel, bicho papão, fada do dente, monstro do lago Ness, arroz de natal sem uva passa, gelo seco, ou tomada de três pinos?
— Tomada de três pinos!
— Então escreve logo a carta pro papai noel.

Conversando com uma tupperware.

— Meu nome é “tupperware”.
— Foi o que falei “tapever”.
— Você falou “tapever”. Meu nome é “tupperware”, com som de “u” no final
—”Tapevur”????
— Não! É “tupperware”. O começo tá certo, “tap”. No final faz um biquinho daqueles de tirar selfie e depois abre a boca rápido como um leão rugindo: “ware”.
— “Tape… ruorrrr”… É assim?
— Oh Lord! Acho melhor você me chamar de “tapever” mesmo.
— Onde foi arranjar um nome tão estranho? Por que não escolheu um nome mais fácil como Pindamonhangaba? Até falar liquidificador é mais fácil.
— Meu nome é em inglês.
— Inglês?! Porque não falou antes?! Luque de boi.
— Look the boy!
— Isso! Luque de boi
— Não é boi, é boy.
— Boi.
— Boy.
— Boi.
— Boooooy.
— Boooooi.
— Não é boi, é boooooy. Boy.
— Boi.
— Boi é bicho. Boy é menino.
— E menina?
— Menina é girl.
— Gir.
— Tem um “l”, é girl.
— Gil.
— Tem “l” e “r”, é girl.
— Grill
— Não grill é eletrodoméstico.
— Grill para fazer xis burgui.
— A pronuncia é “cheese burguer”.
— Isso! Igual no Meque Donaldi.
— Essa pronuncia você quase acertou: “Mac Donalds”.
— Sempre passo lá de carro na volta do serviço.
— Vai no Drive Thru?
— Vai você!

Uma miniramp é um violão com dois trastes. Você só tem uma casa para fazer todos os acordes (manobras). Claro! Usando os pés. De resto, é muito parecido. Primeiro você precisa aprender as três manobras básicas: drop, rock and roll, stall. No começo é o caos. Falta equilíbrio. As pernas se recusam a fazer os movimentos. Os pés se enroscam. Você tem convicção que vai cair e morrer, mesmo estando a um metro de altura do chão. Depois de praticar bastante, fica automático. Daí, quando vai executar as manobras difíceis, descobre que não tem nada de difícil, que são apenas variações das manobras básicas. Muda uma posição no truck, acrescenta um movimento a mais, retira outro, escorrega o shape para frente. E assim por diante, igual no violão.

O menino está sozinho no quarto.

— Ganhei um violão de natal
mas tocar ele não quis
por isto me desfiz
guardando-o no armário.

Agora ele está solitário
e eu estou mudo.
Entre nos há um armário
ou melhor, um escudo.

Já tem um mês acabado
e a história continua se desenrolando
ele, lá dentro, calado,
eu aqui fora, esperando.

Quem passa
ouve só um zumbido:
eu chorando
em frente ao armário embutido.

Conclusão,
dois violões na historia:
um que não saí do armário
outro que não sai da memória.

Meus pensamentos?
Turbilhões numa partida de xadrez.
Minhas opções?
Violão, porta e talvez.

Dar o braço a torcer?
Nem ele nem eu!
Ter esperanças ou crer?
Nunca, sou ateu

até que ele me prove
o contrário.
Não caio nesse conto
do vigário.


Muitos dias depois…

— Feliz é o paletó branco
que tem em seu aposento
um instrumento
e um amigo franco.

Infeliz sou eu, aqui fora
que tenho
cada hora
queimando-me como lenho.

Mas porque espero?
Não posso dizer que não quero!
Sinceridade!
Até que tenho vontade.

Mas para agir
é preciso além de vontade
sentir
de verdade.


O menino dorme e acorda dentro do armário.

Acho que errei, lamento
dei o passo maior do que a perna.
Acho também esqueci a lanterna
e o juramento.

Parece que dormi numa gaveta
estou torto como uma camiseta
dobrada varias vezes
guardada por meses.

Será que as pernas
tem vida independente
e andam palermas
sem perguntarem para gente?

Como poderia alguém
deitar em leito diário
e acordar muito além
dentro do armário?

Cada noite tem seu mistério
e o medo encontra seu cemitério
diante da necessidade
e da verdade.

Sei bem como vim parar aqui
tive um aliado
a noite foi meu trampolim
para o outro lado.


O menino começa a caminhar pelo armário.

Tem alguém em casa?
Procuro por um instrumento!
Ele só tem uma asa
quer dizer, um embraçamento!

Tem o corpo assim, flamingo,
igual uma pêra
dessas que a gente compra na feira
de domingo!

A boca fica na barriga
embora fale pelos cotovelos!
Alguém, me diga,
pode vê-lo?

Já que ninguém responde
seguirei este varão,
quem sabe ele é o bonde
que me levará ao violão.


O menino encontra alguém no caminho.

Olá cabide,
como tem passado?
– Muito bem,
obrigado,

mas quem passa
é o ferro de passar,
eu, por outro lado,
fico pendurado no ar.

Cabide, me diga,
porque essa boca gigante,
parece um elefante
comparado com uma formiga?

– Minha boca é grande,
eu admito,
mas em boca fechada
não entra mosquito

e na minha entra de tudo
desde calca de linho
até vestido
de veludo.

Sabe, Cabide,
o que me divide,
a razão de meu tormento,
é o instrumento

de seis veias musicais
que procuro,
mas nesse escuro,
talvez não encontre jamais.

– Procure se acalmar,
basta seguir o varão
não tem como errar
a direção.

Muito obrigado!
– De nada!
Mas cuidado
psra não sair da estrada.


O menino sente um cheiro familiar.

Reconheço este cheiro
a distancia de um alqueire!
– Seu pé também não é flor
que se cheire!

O que você disse. Não é flor…
– Disse que estou
com o mesmo odor
do pé de quem me usou.

Você e minha meia, não é?
Mas é claro!
Posso sentir pelo faro
que tem o mesmo cheiro do meu pé.

Cara meia, desculpe desgosto tamanho,
mas me separei do violão
e desde então
nunca mais tomei banho.

Prometo lavá-la outra vez
assim que resolver esta questão.
– Para quem já ficou um mês,
o que é um dia a mais sem sabão?

Já se foi meia jornada,
mais meia e você fará o par,
de mim, não esqueceras por nada
pois te seguirei pelo ar.


O menino segue viagem, de repente…

Ai, essa não, acabou o varão!
O que faço agora?
Chega, vou sair para fora
sem o violão!

– Siga o ponto
luminoso!
Quem fala assim
tão carinhoso?

Sou Zé, o kimono moderno
de um samurai.
Ah, já sei, você é o terno
de meu pai.

Mas você aqui, no meu armário?
Me desculpe o vocabulário
e o queixume,
mas aquilo não é um vagalume?

– Você tem todo o direito
de indagar
Estou aqui porque
tinha que estar.

Quanto a luz, chame-a do que quiser
Alguns chamam Estrela de Nazaré,
outros dizem Sol.
Eu prefiro chamá-la de fé.

Mas, Zé,
como seguir a Fé
sem me perder por caminhos
sem placas ou sinais?


A pergunta fica no ar. O menino continua caminhando.

Por aqui me parece que não!
Talvez por aqui.
Ou senão…
Por ali…

Acho que estou mais perdido
que cego
sem ouvido
Socooooorro!!!

– Para que gritar
se de nada adianta
antes de acabar seu pranto
secará sua garganta.

Pelo tom do conselho
diria, sem medo de errar…
– Sou eu, Alencar,
Seu espelho!

Alencar, meu irmão,
estou tentando seguir meu coração
mas tenho medo
e acabo seguindo o dedo,

o rei do labirinto,
e toda vez que sinto
que estou chegando no local desejado
ele muda de lado.

– Mas que afoiteza:
errar faz parte,
veja a natureza
por contraparte

não pode falhar
um só dia do ano.
Errar
é humano.

Mas, Alencar,
quanto mais tenho
de continuar
errando

pois isso, sei bem,
é só o que tenho feito.
Será que não tem
outro jeito?

Além de tudo,
sinto-me cansado,
estou cabeludo
e barbado.

– Deite-se neste chão
feito de abandono
e espere que o sono
estenda-lhe a mão.

Alencar,
será que em sua memória
não tem uma história
para me contar

– Sim, existe,
mas é uma história triste.
Tudo bem, olharei a tristeza
pelo avesso.


CAPÍTULO | 09

Alencar começa a contar uma história.

– Era uma vez Chico,
um pobre homem rico
de tudo tinha a vontade,
menos felicidade.

O pobre Chico cometeu
um só erro
e como Romeu
provocou o próprio enterro.

Chico trocou o secundário
pelo principal
trocou a cópia
pelo original

jogou as pernas no terreno
e colocou no lugar uma muleta
preferiu o veneno
ao amor de Julieta.

Chico fez como todo aquele
que nadou
no mesmo lodo
que ele,

segui as cegas
como um cavalo
foi piegas
e vassalo.

Amou sem conhecer o amor,
viveu, mas não viveu,
raiou apenas para se por
no breu.

Quando olhou sua ampulheta
e viu o ultimo grão caindo do cavalo
largou a muleta
e correu apanhá-lo.

Agarrando-o, deixou a mão bem fechada,
mas a porção de granada
escorreu entre os dedos de Chico
e como um tico de nada

caiu sobre o conto
deixando ali um sinal,
um ponto
final.


O menino adormece e ao acordar…

Alencar!
Que sonho bom!
Haviam anjos e cornetas
estrelas e cometas

num céu azul claro
onde um raro
violão de doze cordas
e borda

de sol dourado
tocava bem afinado
a inspirada melodia
de um novo dia.

Antes de me levantar
deste chão
quero me indagar
sobre o violão.

O que nele me interessa?
Seria apenas
mais uma peça
na minha decoração?

As doze cordas me deram a resposta!
Quando entrei neste armário
podia até ser
mas agora posso ver

que o violão não é um bem
ele está aquém
disto:
o violão é um compromisso.

O violão era meu desejo,
mas agora vejo
que foi apenas um meio
e creio

que essa viagem, então,
foi como ir ao quintal
e cavucar o chão
esquecido.

Descobri não só um,
mas muitos violões
todos escondidos
em iguais condições.

Por isso, agora,
sem pressa
com a mão na brida,
seguirei por essa avenida

que sempre começa
como um fim,
mas regressa
tim-tim por tim-tim,

para enfim,
tornar-se um meio
dentro
de mim.

Fiz um comentário e o taxista não respondeu. Fiquei aflito. Desconfiei que o jogador fosse da família dele. Depois percebi que o taxista não estava me ouvindo, estava ouvindo o jogo. Um taxista que concordasse com o cliente era o mínimo que esperava, mas para evitar uma bola na trave, remediei:

— O senhor é corintiano?
— Já fui, igual meu pai!

Um vira-casaca! Aquele era o segundo caso que conhecia. O primeiro era um amigo de infância.

— Por que mudou de time? — perguntei.
— Culpa do meu pai.
— É sempre culpa do outro! — pensei.
— Antes de ser taxista, eu trabalhava de metalúrgico — ele disse — daí inventaram um teste de aptidão, e quem não passava no teste, era demitido. Não passei nem perto.
— Foi demitido?
— Fui sim, mas quem se chateou mesmo foi meu pai.
— Ele brigou com você!
— Muito pior! Eu era menor de idade e não podia assinar documento, então, meu pai foi receber o dinheiro da rescisão no meu lugar. Maldito dia!
— Maldito, por quê?
— Para me castigar, meu pai bebeu todos meus direitos em cachaça.
— Vixi! Gastou todo seu dinheiro?
— Num dia só. E ficou caído bêbado no chão do boteco.
— E daí você mudou de time?
— Sim, de tanta raiva!

Se você sabe que Elvis Presley morreu, que Michael Jackson morreu, que Prince morreu, mas não sabe que Chico César está vivo, tocando aos vivos, é com você que estou falando! Se seus heróis morreram de overdose ao invés de dengue, bala perdida e subemprego, é com você que estou falando! Se você quer tocar numa banda, mas nunca viu a banda passar, é com você que estou falando! Você está dormindo dentro de uma garrafa de coca-cola. Esse texto é um vírus de água de coco para despertá-lo do american dream. Wake up, Nego! You é brasileiro!

— É hoje? — eu perguntava todos os dias ao acordar.

Uma vez a cada sete dias a cabeça balançava para cima e para baixo. Para mim, além de resposta afirmativa, era dia do suquinho. Só de pensar, meu estômago lambia os beiços. Logo me voluntariava a carregar as sacolas. Uma vez na feira, conversava telepaticamente com o líquido dentro da caixa de isopor, lambendo-o com a língua da imaginação. Quando finalmente passava diante da barraca do suquinho, apontava para caixa e berrava:

— Mãeinhê! Compra?
— Credo, filho! Isso aí é xixi com tinta! — retrucava a mãeinhê.

Podia ser veneno! Meu sonho era sentir aquele xixi gelado deslizando goela abaixo. Mas sobre a radiação seca do asfalto, a mãeinhê transformava o suquinho em caldo de cana. O suborno verde não era ruim, mas além da cor fosca, vinha num copo sem graça e não dentro de foguetes, carros e telefones, como o suquinho. Eu engolia o caldo ocre resignado.

O tempo atropelou minhas lombrigas e deixou apenas essa história que, certo dia, contei para um amigo. E ainda bem que contei, pois por coincidência, milagre ou misericórdia, não é que meu amigo encontrou o tal suquinho numa mercearia. Comprou um exemplar roxo em formato de carro e foi em casa no mesmo dia.

O líquido ainda estava gelado quando ele me entregou. Minhas mãos e meus olhos ficaram úmidos. Numa espécie de terapia de vida passadas, me sentei no chão e comecei a morder o pára-choque do suco. Quando o plástico se rompeu, espremi todo o líquido goela abaixo até terminar a catarse.

— Gostou? — perguntou meu amigo.
— Parece xixi com tinta — respondi satisfeito.

© 2024 · Marcelo Ferrari