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Lições que aprendi convivendo com um bando de machos

20/07/2023 by in category Prosa tagged as , , with 0 and 0

Essa semana saí do grupo de whatsapp do racha. Sair do grupo significa que você não tem mais acesso a lista de participação, então, é o mesmo que sair do racha. Fiquei triste de sair, claro, porque adoro jogar futebol, mas foi preciso. Além de um evento desagradável durante um jogo, que foi a gota d’água, não podia continuar abençoando certos comportamentos de discriminação que vinham acontecendo comigo e com outros integrantes.

Vários integrantes do grupo são amigos e tem consideração por mim, então, supunha que minha saída iria gerar no mínimo uma reflexão do tipo “Ué! Por que será que o Ferrari saiu?”. E se isso não acontecesse, se minha saída fosse motivo de celebração, do tipo “Ainda bem que o Ferrari saiu”, daí não havia mesmo motivo forte suficiente para voltar.

Depois de cinco dias sem que meu whatsapp fizesse nenhum barulho de mensagem, ouvi um “plim”. Era o coordenador do grupo perguntando se podia me adicionar novamente. Disse que assim que voltasse iria conversar com o grupo todo sobre a questão de discriminação que estava acontecendo. Se ele aceitasse isso, então, sim, poderia me adicionar novamente no grupo. Ele me adicionou e escrevi um textão falando do evento gota d’água e apontando todos os pecados de discriminação sem nomear os pecadores. Claro que meu comportamento não alegrou os pecadores, pelo contrário, mas fiz e voltei para o racha.

No racha seguinte, os discriminados vieram me agradecer pelas palavras e os discriminadores ficaram pisando em ovos para conversar comigo. Durante o jogo, errei alguns lances e perdi um gol. Então, um amigo que estava jogando no meu time teve um comportamento autoritário e desagradável comigo, e, na sequência, outro, que considerei falso e infantil.

No dia seguinte, me lembrei que esse amigo havia me dito “Se tiver algo no meu comportamento que te incomode, só me falar.” Aproveitei a abertura, mesmo supondo que ele iria se arrepender do que havia dito e falei sobre o comportamento dele. Ele ficou bravo e me disse: “Você é ótimo para apontar o erro dos outros, mas é péssimo para ver os seus!”.

Fiquei com aquilo na cabeça. Então, durante a tarde, tive a ideia de criar a “Pesquisa De Comportamento Do Ferrari”. Se meu amigo estava certo, se eu era mesmo incapaz de ver meus erros, se todos estavam vendo menos eu, então, a pesquisa iria revelar isso. Criei um formulário e enviei no privativo de vários amigos do grupo, inclusive os discriminadores. A pesquisa perguntava basicamente o que eu fazia de errado como pessoa (integrante do grupo) e como jogador. Nem todos responderam, mas a maioria, sim.

Foi surpreendente o tanto de afeto que recebi. Todos que responderam me disseram que eu era querido deles e do grupo em geral. Fiquei com o coração cheio. Vai parecer suspeito o que vou dizer, mas só recebi elogios, nenhuma crítica. A única crítica que recebi, foi em relação ao jogador. Me disseram que eu preciso correr mais, me esforçar mais, que só fico no ataque e não volto para compor a defesa. Entendi o pedido e expliquei que não é falta de esforço, é falta de energia e musculatura para correr na mesma velocidade dos atacantes The Flash. Mas se o problema era ficar no ataque, então, eu poderia jogar na defesa.

No racha seguinte, ontem, joguei na defesa. Não perdi nenhum gol, então, a discriminação despencou ao nível zero. E joguei caladinho, fazendo a função de zagueiro e pensando em tudo que havia aprendido com essa história. Fiz uma lista das lições aprendidas. Tem lições que estarão inclusas na lista, mas não contei o ocorrido que gerou a lição, porque estou compartilhando o link desse texto no grupo e não quero expor as pessoas. Então, vamos lá! Lições que aprendi convivendo com um bando de machos.

SOBRE SER MACHO (MASCULINIDADE)

Homens não sabem expressar sentimentos, a não ser quando estão bêbados, por isso bebem tanto.
Homens acreditam que sofrimento é mimimi.
Homens acreditam que Deus é homem (macho).
Homens que reprimem o que sentem e pensam tem medo de homens que expressam o que sentem e pensam.
Homens não tem ouvidos (não sabem ouvir).
Homens perdem a saúde por não saberem perder.

SOBRE A CULTURA DO FUTEBOL

Gol é buceta (o que importa é fazer gol, foda-se toooooodo o resto)
Pode errar todas as questões da prova, pode errar todas as regras de trânsito, pode errar o que for, mas nunca, jamais, pode errar o gol.
Quando você faz gol, você é deus, quando você erra, você é o diabo.
O maior pecado que uma pessoa pode cometer na vida é errar um gol.
Imoral é perder o jogo.
Antiético é perder o jogo.

SOBRE BOA CONVIVÊNCIA

É melhor viver com a porta aberta (vale a pena se abrir e expressar os sentimentos para o agressor, embora não seja garantia de reconciliação).
Quem enfia a faca não sente a dor, por isso, é importante gritar quando dói.
Seu problema comigo, não é problema meu, é seu.
Ser bom não é ser bonzinho.
Apontar o erro do outro só é bem vindo quando ele quer melhorar.
Não adianta conversar com quem quer ganhar. Diálogo só produz boa convivência entre pessoas que estão interessadas em perder seus equívocos.
Não tem diferença nem separação entre o futebol e a convivência humana, embora todos acreditem que tenha.

SOBRE MIM

Eu devo continuar fazendo o que sinto e acredito.
O simples fato de eu ser eu faz com que o outro me aprecie (embora não todos).
Eu aguento o tranco de não me comportar como um macho dentro de um grupo de machos.
Eu prefiro perder o jogo do que perder o amigo.
Eu prefiro acreditar na amizade do que acreditar em Deus.

© 2023 · Marcelo Ferrari