Saio para ver a luz da tarde. Ela me oferece coração de boi. Agradeço a gentileza e recuso, não pelo gosto, mas pelos fiapos, que prevejo, ficarão entre os dentes.
Acendo o cedê-player. Ela me chama. Faço leitura labial: “Você está surdo?”.
Peço que desamarre o lenço suado que segura os cabelos cinzas e meto cazuza em seus ouvidos. Ela sorri quase virgem, depois cruza o espaço entre a cozinha e o futuro uma duzia de seis.
Abro uma garrafa de Chico Buarque e fico aguardando o desfecho da cena.
Ela liga a televisão na missa, lê a receita com a ponta dos dedos e joga farinha branca na bacia azul. O cachorro escarlate em volta dela.
O que será que me dá?
Ela arremessa a massa redonda sobre a mesa. Ah, se meu cavalo falasse inglês!
Entro na cozinha para beijar a estrela da cena. Ela está de olhos fechados, com as mãos abertas em oferenda, repetindo as palavras do padre eletrônico. O pão nosso de cada dia cilindrado sobre a mesa.
Preciso não dormir. Amém.