Acordei com vontade de beijar um homem. Não saí do armário. É saudades do meu pai. Saudades de brincar de plástico bolha com o lóbulo da sua orelha. Quantas histórias! Vou contar uma que marcou minha alma e seu corpo. Uma que começou com uma carreata de sorveteiros.
Uma loja estava sendo inaugurada perto de casa. Fui participar da distribuição gratuita de sorvetes. Na pressa, me descuidei com o trânsito e acabei tendo o pé atropelado por um fusca. Só que ao invés de passar por cima do meu pé, o fusca parou em cima dele. Depois me puxaram pelo braço até o pé sair debaixo do pneu. Resultado, além do pé quebrado perdi a pele de cima do pé.
Os médicos fizeram enxerto. Funcionou. Só que teve que engessar também. O enxerto precisava de curativo e o osso precisava de imobilização. A solução foi fazer uma janela no gesso para possibilitar a troca do curativo.
Nada doía tanto quanto trocar aquele curativo. Por mais jeitosos que os enfermeiros fossem, por mais pomada que se colocasse no local, a gaze grudava na carne e retirá-la era como arrancar a pele. E pior que uma vez por semana a tortura se repetia para evitar infecção. É aí que meu pai entra nessa história.
Certa vez, durante uma viajem, meu pai me levou à farmácia para trocar o curativo. O farmacêutico tirou a tampa do gesso e meu pé já começou a doer. “Por favor… por favor… por favor… pai… pede para ele parar!”, eu implorei.
Prometi estudar 12 horas por dia. Prometi jogar futebol na terra e voltar com a roupa limpa. Prometi arrumar a cama. Prometi comer só um bis. Não teve acordo.
Claro que nenhum pai gosta de ver o filho sofrendo, mas tem dores que temos que passar para continuarmos vivendo. Além do que, dor muito maior viria se aquele enxerto infeccionasse. Meu pai balançou a cabeça e deu autorização ao farmacêutico para prosseguir com a troca do curativo.
Disse ao meu pai que ele era mal, que era o pior pai do mundo, etc. Meu pai me deixou xingá-lo e reclamar a vontade. Depois esticou o braço e me disse: “O tanto que doer no pé, você morde no meu braço”.
Sim, meu pai foi grande, mas como a dor deixa a gente pequeno e cego, não me convenceu. Quanto mais o farmacêutico puxava o gaze, mais doía, e quanto mais doía, mais eu cravava meus dentes de leite no braço do meu pai. Mordia de raiva e vingança. Mordia de filho pródigo.
Acordei com saudades de beijar e morder esse homem.