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Cria poesia

24/04/2003 by in category Prosa tagged as , , , with 0 and 0

O filme parecia um blues tocado por um pianista bêbado no funeral da mãe. Se chamava “Cria cuervos”. Se você já assistiu, sabe que é atípico expor uma criança a tal conteúdo tétrico. Não sei onde minha vizinha estava com a cabeça para me levar com seu filho aquela sessão de cinema.

Eu nunca havia experimentado uma crise existencial, mas nesse dia, assistindo o filme, experimentei, mesmo sem saber que estava experimentando.

A protagonista do filme, uma menina da minha idade, não sabia usar as pálpebras para chorar, então, colocava a vitrola para chorar por ela. A música era sempre a mesma, com batida animada de circo, mas que ao percorrer o caminho até o coração, se transformava em um tango lento e denso.

Eu era moleque de rua, cavaleiro do Rei Arthur, matador de formigas, filho do sal e do sol. Aquele sentimento uterino não era bem vindo no meu corpo de batalha. Mas para o meu espanto, me cativou. Senti vontade de me encolher na cadeira do cinema e chorar igual a menina na tela.

Passados três dias, a mesma vizinha me deu um disco com a música do filme. Era um compacto de vinil. Coloquei o disco para rodar. Ao ouvir o sotaque espanhol e os metais estridentes, voltei ao jardim da melancolia.

Feito um viciado, passei a injetar aquela tristeza através da agulha da vitrola. Eu era feliz, não tinha motivo para tristeza, era apenas vontade de experimentar um sentimento inédito. Tanto que, passado algum tempo, virei o disco e voltei para a corte do Rei Arthur.

© 2023 · Marcelo Ferrari